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Árvore velha

Enquanto escrevia que começo e fim são o prolongamento de outra coisa e que essa outra coisa repousa em algum lugar do tempo inacessível, minha vó se despedia da gente no hospital. Estava há dois meses internada depois de uma queda em que fraturou o fêmur. Levada à unidade de atendimento, rapidamente apareceram mil e uma doenças, fragilidades, vacilações de um corpo de 95 anos que se mostrava a cada dia mais cansado do que todos nós desejávamos que estivesse. A vó foi embora sem dar um alô derradeiro pra gente – ou pra mim, que não a visitei após a última transferência. Nesse tempo, telefonava pra mãe, perguntava, tentava animar as coisas. Fui vê-la quando ainda estava na UTI e a situação era mais delicada.  Há duas semanas, porém, houve pequena melhora, que resultou na mudança para um leito destinado a pacientes cujo risco de morte deve ser um degrauzinho menor. Os rins voltaram a funcionar, o pulmão dava sinal de que iria se recuperar, os olhos abriram e ela fina...

Um final para todas as histórias

A grande dúvida é se leio o final de “Caverna do Dragão”, e com isso me liberto do mistério que se arrasta há pelo menos vinte e cinco anos, ou se, conscientemente, evito a todo custo conhecer esse segredo de Fátima dos desenhos animados recentemente divulgado na internet.  As duas alternativas são igualmente tentadoras, mas tendo à segunda, ou seja, a me distanciar do conhecimento derradeiro – considerando-se a possibilidade remota de que esse final coloque realmente uma pá de cal na história do grupo de adolescentes que viajou do parque de diversões a um parque do mundo fantástico. Conhecer ou não conhecer, eis o problema: quem conhece elimina o mistério ou amplia-o? Por que tanta gente resolveu forjar finais próprios durante todo esse tempo em que não foram produzidos novos episódios para a série? Afastado da leitura, teria o privilégio de seguir imaginando, como qualquer pessoa saudável, meus próprios finais para a aventura, é verdade, mas também me privaria d...

Sobre "As miniaturas", de Andréa del Fuego

Sobre As miniaturas , de Andréa Del Fuego, um comentário brevissimamente superficial (como veremos, a despeito de manter a superficialiadade, acabei escrevendo muito, mas preferi preservar o espírito de falsa modéstia do primeiro parágrafo) porque tenho de fato pouco a dizer do livro e o pouco que tenho, considero-o baseado em uma única leitura de um única obra da autora. Que julgo não haver entendido completamente, ou nem parcialmente, de modo que gozei da leitura, entendendo por gozar o fruir do jogo de espelhos e metalinguagem forjado por escritores, quase nada, digo: muito pouco.  Colaborou para isso, claro, a própria autora, sem a qual não haveria livro nem história nem personagens nem a trama do edifício cujo nome não lembro agora. A gente - solidariedade retórica - sente logo quando não vai vingar esse “acordo tácito” segundo o qual o leitor se deixa enredar pelo escritor e diz "ok, vou prazerosamente fingir que as coisas são assim", ou quando vai vinga...

Cair três vezes

Hoje talvez não fosse o dia certo para ler Diário da queda. Sem dar importância a isso, liguei o computador, pluguei a internet na tomada e resolvi então que ainda podia escrever algo nesse restinho de domingo, mas o quê, pensei, e decidi que falaria desse livro incrível do Michel Laub.   Depois de concluir o romance, o sentimento era de estar às voltas com o conteúdo visceral de três corpos, as dores de uma família, as manobras domésticas, por assim dizer, e isso nem sempre é algo agradável. Isso quase sempre é muito desagradável pelo que projeta da nossa própria história e, por conseguinte, da própria família. O narrador de Laub expunha-se cruamente. E o domingo é um dia mais para as amenidades. Pensem nesse triângulo traumático formado por avô, pai e filho em Diário da queda. É um fardo que o leitor só deixa descansar um pouquinho na derradeira linha, e olhe lá, e isso também se confronta com o espírito pouco voluntarioso do domingo.   Pensem ainda que o...

Sobre "Divórcio", romance de Ricardo Lísias

Crédito da foto:    Fernanda Fiamoncini De ontem pra hoje, praticamente não fiz outra coisa senão ler Divórcio, novo romance do Ricardo Lísias, autor de O clube dos suicidas e O livro dos mandarins etc. Entre 23 horas e 4 da manhã, atravessei uma maratona de frases distribuídas em 240 páginas que se despedaçavam do corpo do protagonista, também chamado Ricardo Lísias, como partes da fuselagem de um avião que se desfaz ao cair de uma altura incrível, ameaçando pegar fogo antes mesmo de tocar o chão. Foi assim que me senti o tempo inteiro enquanto lia Divórcio, um astronauta cuja roupa despressuriza e cai da corda bamba, um aviãozinho de papel de repente colocado em pleno vôo do alto de um prédio, um bólido em chamas desaparecendo no contato com a atmosfera extrema de um planeta estranho. Um corpo sem epiderme, nu, exposto.    Fui atingido. É impossível não ser. Divórcio, história de traição, amor e vaidade, é uma leitura em queda, vertiginosa, ant...

Catecismo da concha

Pensando na carência de mitologia da e sobre a cidade, lembrei imediatamente do Monza do Amor, um brinquedo literário entre o sério e a farsa, um autoengano revelador. Mara Hope do asfalto à deriva na própria ferrugem, o Monza é também o ponto de convergência de uma cadeia de acontecimentos que se desdobra no tempo e no espaço.  Envolve jovens, adultos e velhos, polícia e guardas noturnos, vizinhança e entregadores de pizza, os verdadeiros vigilantes da fortaleza, os únicos a trafegar na contramão. Considerem os agentes que transformam uma cidade no que ela é, no que ainda não é mas será, no que talvez nunca se transforme. Todos passaram pelo Monza e deixaram ali um rastro, uma marca, uma impressão, e é dessa marca rasteira apagada nas bordas que se rememoram as vidas.  O Monza é semelhante à concha totêmica dos meninos da ilha em O senhor das moscas . É através dele que se narra a história de um grupo de pessoas específico: dois homens, três mulheres, um vel...

Coração, encantamento, divórcio

Sobre as leituras que não cabem nas páginas: Meu coração de pedra-pomes , concluído, nada a declarar, exceto a opinião vagamente sincera de que se trata de uma dessas leituras feitas para gente muito diferente de mim e eventualmente até não tão diferente assim, mas refém de uma autoimagem que destoa bastante do que é de fato. O que nos aproxima mais do que nos afasta.   Juliana Frank, autora desse livrinho curto, uma prosa de marteladas e gemedeiras, gozo pulp, delicada, mas ainda assim... sei lá. Diria que é irregular se acreditasse em gente que diz que tal livro ou tal filme é irregular, se acreditasse na irregularidade tanto quanto na regularidade, se acreditasse que continuamos gostando de algo no segundo seguinte depois de falarmos: isto é irregular. Quer dizer, nem uma coisa nem outra. Se me pedissem algo honesto, falaria simplesmente: não é um livro feito pra mim, não gostei por isso (meio verborrágico), por isso (é cheio de um tipo de juventude que n...