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Ri, tá verde

Uma coisa que incomoda não é a falta de união, que isso nem família tem, na minha há um bocado de desunião, mas nos amamos assim mesmo, chega sempre esse momento em que a gente se olha nos olhos e diz as coisas que vem planejando dizer havia muito tempo. Então acontece e tudo tumultua, mas em seguida volta ao lugar e agora estamos melhor, seja porque dissemos e alguma coisa mudou, seja porque dissemos e, a despeito de não ter mudado nada, não sufocamos mais as verdades que tínhamos guardado por tanto tempo nessa caixinha preta cheia de gordura e venenos e mezinhas que não curam. Dito isso, o que incomoda é a falta de três itens bem simples, honestidade pra discutir, seriedade pra respeitar, abertura pra se interrogar. Essa honestidade mais básica, elementar, uma que tenta extrair um tantinho de proveito mesmo das situações mais risíveis; um respeito ao outro, básico também; e uma abertura genuína, não alçapão, a abertura que funciona como armadilha pra fisgar o outro, q...

Avança, corta, recua

O que interessa não tem pressa.  Os apressados comem cru, comer cru equivale a comer antes do tempo, uma das características dos que têm pressa é precisamente desejar sempre que algo aconteça antes da hora, a foto do Instagram, por exemplo, envelhecida por artifício e refém de um falso acúmulo da vivência, ou a fotografia da viagem, tomada por qualquer um como datada de trinta ou quarenta anos atrás, mas feita antes de ontem, ou ainda o vestuário, com peças resgatadas dos anos 60/70 vestindo corpos das gerações x, y, z e w.  Por contato, por usucapião, por similaridade, por proximidade, o que queremos é que as coisas tenham uma profundidade disposta em muitas camadas que apenas o tempo transcorrido confere. E essa é a mágica de agora: avançar e recuar a tabuleta cronológica. Os tempos são de pressa, de experiência simulada, simulacro do beijo, simulacro do abraço, da festa, da saudade, a gente quer pular algumas etapas e chegar num salto ao que interessa, mas...

Aquele ano tão sujo

Não lembro quando foi a última festa de aniversário. Talvez vinte anos atrás, talvez mais que isso. Vivíamos essa época em que as mães, sumo-pontífices do lar, invocavam o L'État c'est moi para cada pequeno ato despótico na regência do cotidiano da prole. E não adiantava espalhar panfletos trombeteando que o absolutismo era uma ferramenta pedagogicamente démodé ou que essa Bastilha doméstica tinha os dias contados. A instituição materna, responsável por prender, julgar e açoitar, não se importava. Lá em casa não era diferente. A mãe ordenava: filho, hoje é dia de celebrar a Páscoa usando orelhas de coelho. Eu usava as orelhas e ia pra escola desfilar a nova aparência. A mãe dizia: circule os números primos. Eu circulava. Responda com suas próprias palavras: eu respondia. Sublinhe os adjetivos. Mãe, o que é sublinhar? É traçar uma reta embaixo da coisa que você quer destacar das outras. Por que tenho que destacar uma coisa da outra? Destacar é separar, e separando a gente...

Sobre a nudez

Depois do falso salmão, polêmica que ainda não tive tempo de entender direito, do veganismo infantil, resultado da exposição frenética de um vídeo no Youtube mostrando uma criança que se pergunta se é realmente necessário matar, vem aí o nu orgânico, forma de arte-vida-performance que se apresenta como resposta para as muitas angústias do homem e da mulher modernos, resposta essa que também não tive condições objetivamente materiais de compreender. Reparem que o nu orgânico é a contraparte de um nu presumivelmente inorgânico, ou seja, nudez composta de matéria nem vegetal nem animal, onde se conclui que mineral, ou, finalmente, que se enquadra na categoria do inanimado, no que ficamos a ver navios, como pode haver nu orgânico se não há propriamente nu inorgânico? Seria o nu plasmático? O nu espectral, fantasmagórico, ou a expressão diz respeito somente à inexistência de substâncias naturais no emprego desse nu? Ora, por mais silicone que uma mulher abrigue em si, ela ai...

Sobre a digestão

A digestão é uma atividade inevitavelmente lenta, quer se goste dela ou não, cada pedaço daquilo que botamos pra dentro via oral e que se destina ao preenchimento da cota de proteínas necessárias à continuidade da vida se reveste, portanto, dessa qualidade morosa. Comer dá trabalho, digerir dá mais ainda. Comer é um ato gostoso, mas mecânico, amplo, democrático em certo sentido, apaixonado, charmoso, pessoas comendo em torno da mesa, quanta felicidade, pessoas felizes se alimentando, a mastigação a pleno vapor, mandíbulas orgulhosas triturando os sólidos e se abrindo vulgarmente para os líquidos, dentes brancos agora levemente salpicados dos restinhos, um feijão, uma folha, frutas, fiapo de carne. Comer é parque aberto à visitação, obra pública, gesto simbólico, digestão é pessoal, é cada um por si, comer diz respeito à imagem que fazemos de nós mesmos, digerir é o que somos de fato. E o que somos de fato leva tempo para se definir, ou seja, não se define, ou se...

O futuro

Uma semana e tanto. Faço 33 anos na próxima quinta. Fazer é modo de falar. Há nisso mais passividade que ação voluntária, mais aceitação resignada que procura deliberada. Há quase nada de mérito na caminhada – sequer existe caminhada. Ao menos não uma com sentido similar ao de “batalha” quando empregamos “batalha” naquele contexto hospitalar. Assim: para designar a luta encarniçada de alguém contra a morte, invariavelmente o câncer. Do mesmo modo, acumular os dias equivale a caminhar tanto quanto a masturbação equivale a sexo de fato. É uma imagem poética – caminhada – utilizada com a intenção mal-disfarçada de nos acalentar. Para todos os efeitos, integramos satisfeitos essa marcha inexorável para diante, jamais para os lados e muito raramente pra trás.   Não lembro quando foi a última festa de aniversário. Talvez quinze anos atrás, talvez mais que isso. A data remonta àquela época em que nossa mãe governava despoticamente cada pequena ação cotidiana. Ordenava: use o...

Quem se importa

É possível viver sem tudo isso? Por “tudo isso” entendam “tudo isso”, expressão de abrangência relativa que designa posses diferentes para cada pessoa e para cada pessoa uma ideia diferente de posse. Basicamente, pergunto se é possível viver sem o que está ao alcance da mão, um pouco mais distante, a cinco metros, por exemplo, ou um tantinho mais longe, mas não o suficiente para nos fazer pensar duas vezes se vale a pena o esforço de caminhar até lá e simplesmente pegar essa coisa se essa coisa é mesmo a coisa que estamos procurando e não outra coisa, uma que, embora não quiséssemos em princípio, agora nos parece inexplicavelmente curiosa. Uma coisa não muito longe da razoabilidade, portanto.  Essas perguntas embutem uma outra, mais prioritária, se é possível matizar a ordem de prioridades na vida de uma pessoa. Vamos a ela: o que de fato tem importância? O que importa? A nossa crise - se há uma – é a crise da importância? É a crise de não saber o que é impo...