Pular para o conteúdo principal

Ri, tá verde



Uma coisa que incomoda não é a falta de união, que isso nem família tem, na minha há um bocado de desunião, mas nos amamos assim mesmo, chega sempre esse momento em que a gente se olha nos olhos e diz as coisas que vem planejando dizer havia muito tempo.

Então acontece e tudo tumultua, mas em seguida volta ao lugar e agora estamos melhor, seja porque dissemos e alguma coisa mudou, seja porque dissemos e, a despeito de não ter mudado nada, não sufocamos mais as verdades que tínhamos guardado por tanto tempo nessa caixinha preta cheia de gordura e venenos e mezinhas que não curam.

Dito isso, o que incomoda é a falta de três itens bem simples, honestidade pra discutir, seriedade pra respeitar, abertura pra se interrogar. Essa honestidade mais básica, elementar, uma que tenta extrair um tantinho de proveito mesmo das situações mais risíveis; um respeito ao outro, básico também; e uma abertura genuína, não alçapão, a abertura que funciona como armadilha pra fisgar o outro, que cai no buraco achando que está ingressando num mundo familiar.

Rir não é o problema, nunca foi, jamais será. O problema é quando rir se sobrepõe ao debate, anarquiza conceitos e terraplana opiniões divergentes. O riso afinal traz sempre essa dubiedade, chama a atenção, polemiza, mas veda as frestas, joga luz sobre temas, mas obscurece os cômodos, tornando a casa menos arejada do que era.

O riso abre portas, mas nem sempre o vento sopra por elas.

Pra cada gargalhada, cada zombaria, cada flechada, nos premie com alguma verdade, alguma pérola, algum naco de presença de espírito, alguma opinião sincera, uma postagem de Facebook, 140 caracteres de Twitter, qualquer coisa, só não fique em cima do muro nem aboletado nas cercanias da academia como um bárbaro a quem faltassem barbaridades para dizer ou fazer. Um bárbaro a quem faltassem armas. Bárbaro pela metade ou apenas em intenção.

Sê bárbaro por inteiro, chapa, não de boutique.  

O ponto de partida é quase sempre uma verdade pessoal afixada com cimento do orgulho e cola da vaidade, que tornam mais difícil a existência de troca. Eu é que presto, o lema da vanguarda cínica decretado no poema do Chico Alvim, resume tudo.

Eu é que presto e a roda gira para onde aponta a minha bússola. O caminho é por onde anda o meu calçado, o norte é para os lados que mostram a minha aurora e por aí vai.

O ponto de chegada é normalmente a presunção pré-paga da burrice do outro. Eu é que sei, mas jamais tive a intenção de dividir a abundância do que sei, se quiserem saber terão de pagar ou pedir, ou implorar, dá no mesmo, desde que o chamado seja feito em arena pública, desde que me peçam com delicadeza. 

Há três pontos, entrar no debate sabendo quais são as regras e a partir delas concordar ou divergir, ou as duas coisas ao mesmo tempo, ou discordar dos termos do debate e, discordando, propor novos termos, novas categorias, novas plataformas.

Só não se satisfaça com os hábitos da República do Solilóquio. Sê um bárbaro com coração, por favor, e olha que ainda me arrisco no terreno pantanoso da breguice apenas para dizer. 

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas