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O futuro



Uma semana e tanto. Faço 33 anos na próxima quinta. Fazer é modo de falar. Há nisso mais passividade que ação voluntária, mais aceitação resignada que procura deliberada. Há quase nada de mérito na caminhada – sequer existe caminhada. Ao menos não uma com sentido similar ao de “batalha” quando empregamos “batalha” naquele contexto hospitalar. Assim: para designar a luta encarniçada de alguém contra a morte, invariavelmente o câncer.

Do mesmo modo, acumular os dias equivale a caminhar tanto quanto a masturbação equivale a sexo de fato. É uma imagem poética – caminhada – utilizada com a intenção mal-disfarçada de nos acalentar. Para todos os efeitos, integramos satisfeitos essa marcha inexorável para diante, jamais para os lados e muito raramente pra trás.  

Não lembro quando foi a última festa de aniversário. Talvez quinze anos atrás, talvez mais que isso. A data remonta àquela época em que nossa mãe governava despoticamente cada pequena ação cotidiana. Ordenava: use orelhas de coelho. Eu usava as orelhas. Circule os números primos. Eu circulava. Sublinhe os adjetivos. Mãe, o que é sublinhar? É traçar uma reta embaixo da coisa que você quer destacar das outras. Mãe, por que tenho que destacar uma coisa da outra? Destacar é separar, e separando a gente entende melhor, e você precisa entender as coisas melhor.

Há todo esse simbolismo em torno dos 33, espécie de marco etário em que, uma vez nele, qualquer um deve se sentir obrigatoriamente estimulado a olhar pra trás e, com uma dose saudável de nostalgia, avaliar conquistas e derrotas. Sem consultar a Wikipédia, normalmente minha fonte para traçar paralelos e estabelecer vínculos entre as coisas, mediação necessária para conectar as partes móveis de um mundo cada vez mais dependente de conectivos acionados virtualmente, lembro apenas da óbvia relação com a idade de Cristo.

Tenho a idade de Cristo, penso em dizer pra vó na quinta-feira. Ela vai suspirar e pedir pra mudar de canal. Já não tem paciência pro Sílvio Santos. Trinta e três, repito. Agora é pensar nos próximos 33 e depois nos 20 anos seguintes, nos dez, nos cinco e assim regressivamente.

Depois dos quarenta, a vida se desenrola em progressão aritmética com razão negativa. Há mais acúmulo e pouca margem de manobra.

Como um bandeirinha esquizofrênico, os 33 anos acenam para o futuro, que continua borrado. Não tanto quanto parecia aos dez anos, mas ainda longe da clareza que imaginei que fosse encontrar quando chegasse aqui. 

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