Pular para o conteúdo principal

Postagens

Sobre a nudez

Depois do falso salmão, polêmica que ainda não tive tempo de entender direito, do veganismo infantil, resultado da exposição frenética de um vídeo no Youtube mostrando uma criança que se pergunta se é realmente necessário matar, vem aí o nu orgânico, forma de arte-vida-performance que se apresenta como resposta para as muitas angústias do homem e da mulher modernos, resposta essa que também não tive condições objetivamente materiais de compreender. Reparem que o nu orgânico é a contraparte de um nu presumivelmente inorgânico, ou seja, nudez composta de matéria nem vegetal nem animal, onde se conclui que mineral, ou, finalmente, que se enquadra na categoria do inanimado, no que ficamos a ver navios, como pode haver nu orgânico se não há propriamente nu inorgânico? Seria o nu plasmático? O nu espectral, fantasmagórico, ou a expressão diz respeito somente à inexistência de substâncias naturais no emprego desse nu? Ora, por mais silicone que uma mulher abrigue em si, ela ai...

Sobre a digestão

A digestão é uma atividade inevitavelmente lenta, quer se goste dela ou não, cada pedaço daquilo que botamos pra dentro via oral e que se destina ao preenchimento da cota de proteínas necessárias à continuidade da vida se reveste, portanto, dessa qualidade morosa. Comer dá trabalho, digerir dá mais ainda. Comer é um ato gostoso, mas mecânico, amplo, democrático em certo sentido, apaixonado, charmoso, pessoas comendo em torno da mesa, quanta felicidade, pessoas felizes se alimentando, a mastigação a pleno vapor, mandíbulas orgulhosas triturando os sólidos e se abrindo vulgarmente para os líquidos, dentes brancos agora levemente salpicados dos restinhos, um feijão, uma folha, frutas, fiapo de carne. Comer é parque aberto à visitação, obra pública, gesto simbólico, digestão é pessoal, é cada um por si, comer diz respeito à imagem que fazemos de nós mesmos, digerir é o que somos de fato. E o que somos de fato leva tempo para se definir, ou seja, não se define, ou se...

O futuro

Uma semana e tanto. Faço 33 anos na próxima quinta. Fazer é modo de falar. Há nisso mais passividade que ação voluntária, mais aceitação resignada que procura deliberada. Há quase nada de mérito na caminhada – sequer existe caminhada. Ao menos não uma com sentido similar ao de “batalha” quando empregamos “batalha” naquele contexto hospitalar. Assim: para designar a luta encarniçada de alguém contra a morte, invariavelmente o câncer. Do mesmo modo, acumular os dias equivale a caminhar tanto quanto a masturbação equivale a sexo de fato. É uma imagem poética – caminhada – utilizada com a intenção mal-disfarçada de nos acalentar. Para todos os efeitos, integramos satisfeitos essa marcha inexorável para diante, jamais para os lados e muito raramente pra trás.   Não lembro quando foi a última festa de aniversário. Talvez quinze anos atrás, talvez mais que isso. A data remonta àquela época em que nossa mãe governava despoticamente cada pequena ação cotidiana. Ordenava: use o...

Quem se importa

É possível viver sem tudo isso? Por “tudo isso” entendam “tudo isso”, expressão de abrangência relativa que designa posses diferentes para cada pessoa e para cada pessoa uma ideia diferente de posse. Basicamente, pergunto se é possível viver sem o que está ao alcance da mão, um pouco mais distante, a cinco metros, por exemplo, ou um tantinho mais longe, mas não o suficiente para nos fazer pensar duas vezes se vale a pena o esforço de caminhar até lá e simplesmente pegar essa coisa se essa coisa é mesmo a coisa que estamos procurando e não outra coisa, uma que, embora não quiséssemos em princípio, agora nos parece inexplicavelmente curiosa. Uma coisa não muito longe da razoabilidade, portanto.  Essas perguntas embutem uma outra, mais prioritária, se é possível matizar a ordem de prioridades na vida de uma pessoa. Vamos a ela: o que de fato tem importância? O que importa? A nossa crise - se há uma – é a crise da importância? É a crise de não saber o que é impo...

O sinônimo de agonia

Há dias penso naquele dicionário elaborado pelas crianças. Os verbetes fizeram sucesso na internet por dizerem as coisas de um jeito diferente do nosso, o jeito dos adultos. É uma brincadeira aparentemente simples. Um professor pediu aos meninos e meninas que definissem alguns conceitos. Igreja, paz, sexo, solidão, tempo, universo, mar, doença, escuridão, lua, mãe etc. Fui uma criança desesperadoramente tímida, do tipo que enfiava a cabeça na mochila para não falar em pé, responder a chamada ou apresentar algum trabalho na frente, encarando a turma enquanto explicava o que eram mitocôndrias e o citoplasma. Uma criança distraída e arredia pode imaginar a dificuldade, para não falar em terror, que uma atividade como essa desperta em parte da turma. Defina qualquer coisa. Pasmo geral; horror inaudito.           Os adultos podem ter esquecido, mas é um desafio e tanto encontrar o nome certo para sentimentos, objetos e pessoas. Muita gente de...

Habitante do bloco K

Embora guarde lembranças boas (porque nele nos debulhamos ao recordar parentes e amigos) e ruins (porque lamentamos a perda irreparável), um cemitério não deixa de ser um lugar interessante, se não pela carga emocional de que se reveste, ao menos pela forte presença de traços da conduta humana só encontrados em logradouros assim. Mais interessante que isso, porém, é a arena física, a disposição, a geometria, as subdivisções e classificações, o senso de aproveitamento do espaço, as regras, a paleta de cores e demais atributos que o caracterizam. Apesar de dar a acolhida final aos que amamos, o cemitério foi feito para quem está vivo – supondo, claro, que os mortos não confraternizem nem se prestem homenagens póstumas. Um cemitério abriga não apenas homens dedicados a regar flores ou a preparar a argamassa que vedará túmulos. Enquanto trabalhadores fazem pequenos consertos, podam árvores e caiam muros, deixando tudo o mais agradável possível para que as pessoas vivas visi...

Pedagogia do possível

A morte terá realmente algo a nos ensinar além do fato de que algumas coisas são irreversíveis e outras não? Que algumas coisas ficam e outras vão embora? Que já não há meios de fazer o tempo voltar? Os cometas passam duas vezes ou mais, os aniversários, os casamentos, os eclipses lunares e solares    se sucedem. E rupções vulcânicas e tremores de terra e tempestades se registram aos montes. O próprio planeta talvez já tenha existido em outras dimensões. E o amor vai morrer numa esquina para se repetir em outra, dizia o cronista. A morte, entretanto, é única. Se deixa recado, se guarda lições, se tem significâncias ou o que quer que compreendamos como supremo ensinamento, tudo isso pertence mais à fé e ao desejo que à certeza. O que queremos é que tudo padeça de sentido. Nem sempre é assim. Garimpar sentido é uma graça.  Enxergar na morte uma lição torna tudo menos doloroso? Encará-la como uma derradeira aula ministrada por alguém cujo rosto não teremos mais o p...