Há dias penso naquele dicionário elaborado pelas
crianças. Os verbetes fizeram sucesso na internet por dizerem as coisas de um
jeito diferente do nosso, o jeito dos adultos. É uma brincadeira aparentemente simples.
Um professor pediu aos meninos e meninas que definissem alguns conceitos. Igreja,
paz, sexo, solidão, tempo, universo, mar, doença, escuridão, lua, mãe etc.
Fui uma criança desesperadoramente tímida,
do tipo que enfiava a cabeça na mochila para não falar em pé, responder a
chamada ou apresentar algum trabalho na frente, encarando a turma enquanto
explicava o que eram mitocôndrias e o citoplasma. Uma criança distraída e
arredia pode imaginar a dificuldade, para não falar em terror, que uma
atividade como essa desperta em parte da turma. Defina qualquer coisa. Pasmo geral;
horror inaudito.
Os adultos podem ter esquecido, mas é um desafio
e tanto encontrar o nome certo para sentimentos, objetos e pessoas. Muita gente
desiste na metade do caminho, e mesmo conceitos banais, como o de saudade e
pudim, se tornam complexos se precisamos explicá-los direitinho. Pudim é um
doce, alguém muito douto esclareceria a um ET. E não estaria errado.
Mas o que é realmente um doce e por que o
comemos são outros quinhentos.
Outro exemplo: gastura. Um professor cruel
diria: “Você aí na terceira fila, no canto da sala, cabelinho na testa e joelho
esfolado. Isso, você mesmo. Levante-se, por favor. Defina gastura. Estou marcando
o tempo”.
No site da BBC, a reportagem começava assim:
“Dicionário de crianças colombianas surpreende adultos”. Em seguida, listava os
vocábulos que haviam sido escrutinados pela mente irrequieta dos pequenos. O branco,
por exemplo, é “a cor que não pinta”. O adulto é “a pessoa
que em toda coisa que fala, fala primeiro dela mesma”. Deus é o “amor com
cabelo grande e poderes”. A água, “transparência que se toma”. Mãe “entende e
depois vai dormir”. A minha ia dormir para depois entender, mas acho que isso
não faz dela um abajur ou um caderno de pauta dupla. Para todos os efeitos, continua sendo a minha mãe.
Agora vem o busílis: alguém é capaz de mensurar quanta dor e
sofrimento foram provocados até que as crianças chegassem a definições tão lapidares?
Certamente não. Preferimos nos concentrar no elevado teor poético presente em cada tradução dessas. Deixamos o esforço de lado e vemos somente a atleta chinesa saltar sobre estrados ou dar cambalhotas ou rebater as bolinhas com uma precisão impossível. Carrascos, técnicos e preparadores não integram o quadro.
Certamente não. Preferimos nos concentrar no elevado teor poético presente em cada tradução dessas. Deixamos o esforço de lado e vemos somente a atleta chinesa saltar sobre estrados ou dar cambalhotas ou rebater as bolinhas com uma precisão impossível. Carrascos, técnicos e preparadores não integram o quadro.
Comigo é diferente. Posso imaginar a
tortura por trás dos verbetes, a agonia camuflada, a dor que possibilitou a
definição de tempo (“coisa que passa para lembrar”). Imagino as dezenas de
crianças que se calaram e engoliram em seco a falta de uma resposta razoável ante
a pergunta sobre a natureza de Deus, da mãe e da lua.
Imagino o tormento em forma de questionário
circulando na sala. O amiguinho da direita rabisca furiosamente; o da esquerda
também. O da frente reflete, dando-se ao luxo de escolher as melhores palavras. O de trás
partilha conceitos, caridoso. O professor checa o celular depois de grafar cinco
colunas de palavra no quadro. Há dois conceitos para cada letra do alfabeto. Uma
dupla de alunos será responsável por cada letra. Viscosa, a agonia pode ser
sentida no ar.
Imagino o questionário ainda
imaculado desse aluno hipotético. Vejo como o pobrezinho se contorce na cadeira sempre que o
mestre passa rente, como finge descontração, como reprova mentalmente a
natureza dessa corrida de cavalos, como anseia pelo fim da aula, como clama pelo videogame e traça estratégias escapistas que envolvem helicópteros, Comandos em Ação e o Cavalo de Fogo. Nada funciona.
Até que o professor interrompe o exercício.
Da mesa, convoca as duplas pela ordem de chamada. A primeira dá conta do recado.
A segunda também. Quatro palavras recebem a graça do olhar infantil. As mães e a diretoria vão suspirar, regozija-se o docente.
A terceira dupla conclui a atividade com louvor. A quinta não se sai tão bem, mas ainda é aplaudida. Na sexta dupla, a sirena toca. A aula termina.
A terceira dupla conclui a atividade com louvor. A quinta não se sai tão bem, mas ainda é aplaudida. Na sexta dupla, a sirena toca. A aula termina.
O aluno sorri. Já refeito, arruma os lápis e o caderno. Ajeita suas coisinhas na mochila do Homem-Aranha. Devolve o papel ao professor, que não se importa se há lacunas. Desfila de volta num passinho contente e vai embora pelo corredor apinhado de pequenas criaturas em marcha.
Estão vendo
esse menino desengonçado? O que vai satisfeito sem sequer lembrar que a tarefinha do dicionário terá sequência na aula seguinte? O que anda apressado, mas não tanto, por medo de parecer fujão. O da farda meio amarrotada, sim.
Esse cara sou eu.
Esse cara sou eu.