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Sonho

Sonhou as poucas razões que havia. Foi um dia de semana trabalhoso, sem café, passara a maior parte do tempo encarando o rosto das pessoas à procura de sinais, queria perguntar, a meio do caminho detinha-se, desmemoriado, esquecido. Era caso de voltar e tentar recuperar o tempo. Um início de mês complicado. Entre cada parte instalava-se essa zona cinzenta habitada por bichos e pessoas, uma fauna completa, um ecossistema, de modo que, ao imaginar-se ali, caminhando sozinho, um clarão de planície varrida por tempestades nas madrugadas, a planície até então vazia enchia-se de pequenos animais carnívoros dispostos a ferir de morte, a matar, a morder e lamber, a dar voltas em torno em busca do corpo massacrado. Era evidente, tentava decifrar o simbolismo do sonho, a morte, a competição expressa, um incômodo, embora não reconhecesse imediatamente o quadro característico de tensão exacerbada. Pensou ligar ao amigo, consultá-lo quanto à razão extraordinária da presciência onírica, rir um...

O pai ao telefone

O pai liga, falam-se o mais básico, interrogam-se o combinado, está de saída, comeu, que tem pela noite, e o fim de semana, comprou as frutas que aconselhei, logo vem o silêncio, o pai quer saber mais, o filho enerva-se, explica que a pilha de negócios não convém ao exíguo do tempo, deita falação, reclama o de sempre, muito trabalho, paga insuficiente, filhos crescem-lhe feito capim, prestações, depois respira fundo como a zangar-se, o pai tem saudade, é sempre assim quando telefona, já perto das 22, o filho é bom, tem certeza, o pai tem saudade, o filho responde após algum tempo preciso de desligar. O pai tem saudade.

Deus das formigas

Um deus piedoso, matasse apenas formigas, aos esguichos, aos jatos d’água, mortas às dezenas, acumuladas em veios que se formariam instantaneamente ao longo da pia, um deus irascível, devoto da lei implacável mercê da qual a menor falha assumisse ares de moléstia disseminada, mais esguichos, jatos, mancheias d’água arremessadas contra as fileiras de pequenas disparadas em procura da menor cavidade, cheias de querer esconder-se, tementes à falta de gozo. Deus final, único, misericordioso, sequer perdoasse as formigas transportando às costas farelos gigantescos de pão.

Faria tal

Era ainda, escreveu, e talvez já nem fosse tanto, por rápido que se estabelecera aquela ponte, anteprojeto da queda, por repleta que fosse a amarra, cheira a abismo. Não há que antecipar, a avó dizia, nem sofrer por qualquer rejeito, não há que avançar aos trambolhos como o soldado em desejo da morte inimiga, não há, não há, eram tantas regras, desfizera-se rapidamente de cada uma. E ali estava, rente ao muro chalpiscado tarde da madrugada, meio leve, meio bêbado, meio encantado, meio triste, como quem parte em procura de saber: o que a avó faria agora?

Ao estranho

Era buscar qualquer coisa, o que traria? Um objeto? Seguramente não, fosse de querer mergulho para dentro, saber-se preenchido de que fluido, enfim, esgaravatar as dobras próprias, com que intuito, tinha por magoar a carne uma necessidade que agora dormia na rubrica do incômodo. No mais, a medida dos dias passava ao largo do entendimento, ansiava, ansiava, mas era assim que procedia, permitindo-se o susto preciso, a paixão doméstica, carga de felicidade comparável ao tamanho que havia de ser para sempre, nem mais, nem menos. Um fatalismo cheio de esperança. Tempo sem medida, tempo todo afeito ao estranho.

Temopó

Não há bem que se explique, é um tempo suspenso, nada passa, ninguém acena, entanto as horas demarcam, a poeira assenta ao tampo da mesa, o grisalho acentua-se, espalha-se mesmo cabeça adentro, a mata decepada encrespa-se como se nascida do outro dia, pagam-se as passagens de ônibus, compram-se os pães do café da manhã. É o tempo que se enverga, pergunta, é o tempo que se desenrola, recusa a qualquer resposta.

Exemplar exemplaridade

O MIRACULOSO ACONTECE Texto faz parte do Caderno das Delicadezas , encartado no jornal O Povo no dia 13 de abril de 2012. Fossem brasileiros e, mais interessante ainda, moradores de Fortaleza, os britânicos Ringo, Lennon, Paul e George teriam evitado a todo custo o excesso de confiança ao atravessar uma rua na faixa de pedestres. E não é despropositado supor que, nessa realidade paralela, o trotar elegante dos garotos de Liverpool, congelado na foto clássica em frente ao estúdio Abbey Road, se transformasse numa desabalada carreira em direção ao outro lado da rua. A lente teria então registrado não a mítica fila indiana, com cada integrante da banda regiamente separado um do outro, mas o desespero que se abate sobre quem, tendo ainda metade da distância até o outro lado, surpreende-se frente a frente com o monstruoso aglomerado de ferro e borracha quente prestes a atacar. Descontado o absurdo da cena, a experiência de pedestre me permite afirmar que, ao menos na capital cearense...