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Marca da calça

Cabeça recostada à janela do ônibus. A posição de lótus na volta do shopping. De repente um rosto que saltava, decalcado. Coração meio tonto, sem catraca, portas giratórias, costumava sorrir, satisfeito. “Não sei dizer”, responderia se lhe perguntassem o que era tão engraçado. Como se pudesse amar cada rosto que passava, cada mecha de cabelo louro, claro, escuro. Cada estojo escolar, camisa esfiapada, perna de óculos, canto de boca, pulseira de relógio. Como era linda a etiqueta da calça, a marca de vacina, mesmo a carteirinha de estudante fulgurava, e não demoraria até imaginar-se casado, filhos etc., imagem que logo se desmanchava. Tão infantil, tão adulto, a marca dos 14 um jogo que terminava tocando musiquinha triste enquanto o herói afundava os pés na areia da praia após ter vencido todos os inimigos. Criança que se apaixonasse tanto, que chegasse ao exagero de amar? Ninguém conhecia no bairro. Uma vez por mês, normal, duas, tolerável, três, mandasse à rezadeira urgentemente...

'Drive': filme-fetiche

“Já não se fala em outra coisa”, é o que dizem, embora seja igualmente verdade que o assunto sobre o qual as pessoas supostamente estariam comentando em todas as rodas de conversa é ignorado por muita gente. Por quase todos, é verdade. Fiquemos na roda da sorveteria. Lá, os temas da vez eram, hierarquicamente, a derrota do Ceará para o Icasa, o clima de segunda-feira que se instala no final de domingo e a infecção pulmonar de Lula. Drive não era sequer o oitavo tópico na lista dos mais discutidos, tendo ficado atrás da eleição de Putin (com 64% dos votos e 96% das urnas apuradas, ficou decidido que Vlad será o próximo mandatário da Rússia), dos boatos de que Angelina Jolie estaria anoréxica (a bela foi vista comprando no McDonald’s, em LA) e de uma série de outras notícias sem importância. De qualquer forma, continuo acreditando que realmente valha a pena ir dormir 50 minutos além do horário normal apenas para assentar mais um tijolinho na fabulosa muralha de impressões generalist...

Sem gorduras trans

Final de domingo é implacável. É sempre a mesma. Não deixo de me impressionar com a beligerância das muriçocas. Verdade é que, a esta hora, não se vê uma mosca, não se veem lagartas, tampouco percevejos ou lhamas, sequer uma dessas borboletas bastante comuns em jardins, um gigante não passeia faltando cinco minutos para se encerrar o dia, passeia?, e quais são as chances de virmos um gambá neste instante? Nenhuma. Entregadores de pizza e muriçocas são as únicas espécies que habitam a noite de um final de domingo. Em qualquer província, em qualquer tempo. Ora, alguém dirá, quase exaltado: “Os ratos, não se esqueçam dos ratos!” Bem lembrado: os ratos chafurdam no terreno baldio, não há como negar. Música de fundo, a cantilena ritmada da gota d’água que nasce no ar-condicionado velho da casa amarela martela insistentemente a cobertura de alumínio da garagem. É melodia cadenciada, propícia aos estudos e ao escrutínio de toda uma vida. A cada dez janelas do prédio vizinho, o mesmo ...

Wilson, o escrotinho

Depois de ler Wilson , de Daniel Clowes, fiquei alguns minutos pensando sobre as razões que levam uma pessoa a simpatizar com a escrotidão, que é uma maneira de viver - nem pior, nem melhor. Há um lado bom e um ruim na escrotidão. Provavelmente há mais lados bons e ruins, e outros que não são exatamente bons ou ruins, mas misturados. Para efeito didático, fiquemos apenas com os antípodas, o que resume bem toda a épica aventura humana e facilita a compreensão. Embora pouca gente perceba, um sujeito escroto é utilíssimo, essa é que é a verdade, e nisso reside a fatura positiva. Por razões diversas, as pessoas tendem a ser dissimuladas. Não é que sejam mentirosas, não concluam precipitadamente. Digamos que, ao mirar benefícios, a maior parte de nós tenha por hábito expressar algo parcial ou totalmente contrário ao que pensa. Para muita gente, o nome disso é “habilidade social”. É aí que Wilson entra em cena. As ferramentas de trabalho do personagem resumem-se a uma só: não-particip...

Sem legenda

Não, não é nem isso. Deixa ver se te explico direito. É como se todo o resto fosse organização e limpeza e metas alcançadas. Um amigo que comprou apartamento, viajou, engravidou, foi morar fora, toda essa áurea positiva e intimidadora emanando das coisas que dão certo na vida dos outros enquanto a sua parece trilhar um caminho errado. Ou nem isso, um descaminho. Sei como é. Bem foda mesmo – que é outra forma de falar “tamo aqui pra isso”, pra acertar e, eventualmente, se foder. É, mas tô ficando vacinada. Quando começo a sentir qualquer coisa assim penso logo: “Massa, mas pode ser mentira e é provável que seja mesmo”. Passo adiante. Puxa, baita lenitivo. Tipo AAS pra falta de autoestima, é? Quem sabe... Porque, por mais brutal que seja... Cara, a gente tem que compreender. Não só compreender, tem que conviver, o que é pior, com o sucesso alheio. [Caem na risada. Pedem mais cerveja. Ao contrário do que haviam prognosticado, estava sendo bom]. Falando sério... Sei mais nem...

Puta engenheiro

Foi rápido?, queriam que dissesse. Envergonhado, reconhece que não. Demorou até perceber, não havia mais nada além da agulha sulcando o silêncio do rótulo. O fim. Sem anunciação. Sem predicados. Sons derradeiros agora pequenos, a guitarra antes estridente suavizava e o baixo soava distante. A bateria apenas um leve rufar, dedos finíssimos batucando distraídos a superfície de uma tampa de maçã verde. A música para. Imaginava tudo de outra forma. Se chegar ao fim, se acabar, tenho certeza que toca Leonard Cohen na churrascaria da esquina, é o mínimo que se espera do desfecho. Uma calma que sentia no intervalo das músicas, essa calma era inteira fraudulenta. No segundo que antecede a faixa seguinte, tinha mesmo era de lidar com o suspenso, o indiviso, o entrementes, digamos, ausência barra presença, e é nesse estado de coisas que percebe, sem muito drama porque afinal porra, a gente tinha sofrido pra caralho desde o começo. Tava na cara que isso não era jeito de se terminar nada, então ...