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Fatos da semana

ZUMBIS PODEM PERFEITAMENTE AMAR, DIZEM ESPECIALISTAS Como se não bastassem as vendas do Natal e as guirlandas que chegam enviadas por clientes desejando feliz ano novo antes do tempo, ainda há os zumbis que me aparecem sempre, e quase sempre me assustam quando se fingem de mortos, mas todos sabemos que zumbis são 1) criaturas horrorosas que se arrastam pelas ruas à procura de carne, de sangue, de nada mais que carne e sangue em proporções desiguais, e 2) só sossegam quando conseguem alguma porção de ambos que possa satisfazer-lhes parte da fome, conclusão) assim é a vida, mortos de fome correndo desesperadamente atrás do que comer, entretanto ora a fome é algo que se possa driblar? Obviamente não, mas pode-se perfeitamente domesticar a fome e ensinar a fome que não é hora de comer, o que deve comer e, mais importante, por que deve comer. Mas fome que é fome sequer entende palavras, ela come. CASAL ENCONTRA NOSSA SENHORA, A ESCRITORA PERDIDA Não há nada de anormal comigo, disse pela te...

Um sapo previsível

Um erro? Foi o que pensou quando viu o copo de suco de laranja tombar, molhando por completo a página da revista semanal na mesinha de centro. O erro havia sido cometido bem antes, antes mesmo do primeiro encontro, naquele dia fora avisado reiteradamente, pequenos sinais emitidos por fontes a que não costumava atribuir qualquer credibilidade, mas que, agora, consultava sempre que dispunha de tempo, de tempo e paciência, de tempo, paciência e fé. Além do amor cego que funciona muito bem como uma caução. Ainda assim desconfiava de que qualquer coisa ali parecia sempre destinada ao disparate, e resolvia arriscar. O risco certamente valeria a pena quando transcorresse o tempo necessário, entretanto essa fatia vagarosa era caprichosa a ponto de se converter em infinitos potes de sorvete expostos à incandescência, que era a idéia mais próxima que tinha de algo que se esvai facilmente à simples passagem das horas, que era uma sensação bastante comum que o acometia sempre que estavam andand...

Uma carta como todas as cartas

Não sabia: era uma carta de despedida, uma carta de boas vindas, uma carta de cobrança, uma carta de intenções ou uma carta de amor? De todo modo, sentiu que deveria escrevê-la, e foi o que fez. Às 11h11, tomou o papel, soltou o papel, ligou o computador, fez café, sentou-se, pegou uma almofada, assentou as costas, tirou a sujeira dos pés, lavou as mãos, sentou-se novamente, desvestiu a camisa, pôs as sandálias, descalçou as sandálias, ouviu música, falou no telefone com uma amiga da escola. Só então pensou que não tinha razão para dizer o que quer que fosse dizer, que a natureza do tempo dispensara as cartas, que agora nada carecia de notas de rodapé, e mesmo essa constatação não seria suficiente para demovê-lo do intuito de escrever uma carta naquela noite. E mesmo a temperança de uma vida cheia de percalços não parecia ter valido de nada, ele estava convencido de que somente uma carta, seja de que natureza fosse, o salvaria do desespero que era encarar a cama encostada na parede e o...

Ela faria qualquer coisa, eu sei

Obviamente considero surpreendente o interesse que temos, ela por coisas diversas, eu pelas mesmas coisas de sempre, ela de maneira espontânea, límpida, vinda talvez dos olhos ou do desenho rascunhado da boca, eu de uma equação cujo resultado deveria ser previsível, mas que, na prática, acaba se tornando uma nebulosa de bolinhas de árvore de Natal, se é que entendem o que podem significar bolinhas de árvore de Natal espocando umas contra as outras quando esse universo de interesses e desinteresses se encontra numa cozinha povoada por amigos e, sim, não percebemos no que tudo redundará, e, não, não gostaríamos de saber do que se trata o que ainda não aconteceu. Obviamente, temos interesses comuns, mas esses são poucos e sequer justificariam um olá discreto na parada do ônibus, de modo que só posso atribuir o que quer que esteja ocorrendo a duas coisas: primeiro, em algum momento da vida, conforme li ainda ontem no cartão azul da Fernanda, “a gente se encontraria sempre”, e a segunda coi...

Não era a primeira vez

Era como se estivesse ouvindo Roberta Miranda e, de repente, ela, a namorada, repetisse um trecho da música, precisamente aquele que diz vá com Deus, vá com Deus, o amor ainda está aqui, vá com Deus, logo ele, que não cria em Deus havia pelo menos vinte anos, logo ele, que faltara as aulas do catecismo não porque quisesse mas porque o dinheiro da passagem era insuficiente e seria por ainda muitíssimo tempo, de maneira que somente a escola era prioridade, a escola e a natação, a escola, a natação e o ballet da irmã mais nova. Logo ele precisava inevitavelmente de alguma garantia, não de qualquer garantia, mas de uma garantia cuja essência dispunha sobre todas as demais garantias, uma garantia que era sobretudo matriz das outras, que não fosse somente um arremedo de garantia, mas voltava a dizer um salvo-conduto para amar. Era assim, explicava para ela quando brigavam sem xingamentos: é fundamental que me diga claramente que precisa de mim e apenas de mim, então posso ficar tranquilo e l...

Teorema incomum

“O sentimento de estar pleno sem estar pleno é confuso”, questionou a premissa apresentada há pouco pela professora de filosofia enquanto verificava no celular uma mensagem de Luciana do 3º B garantindo que a tarde inteira estaria sozinha, em casa, e que os pais sequer perceberiam a cama amarrotada quando voltassem, de modo que ele, Rafael, 17, poderia considerar agora sem qualquer receio a possibilidade antes remota como algo concreto, que, a depender da vontade de cada um, e a dela parecia irrefreável naquele dia, logo seria executada. “São idéias aparentemente contraditórias”, respondeu a professora, uma mulher de 35 anos, bonita, cansada, vestindo jeans, camiseta, meias de algodão e calcinha larga, confortável, e sutiã de bojo, e relógio grande no pulso esquerdo, o que era uma novidade, concluindo um mestrado, recém-separada, flertando com um colega de trabalho, discutindo com a mãe sempre que lhe perguntavam quando finalmente iria encarar a vida como uma estrada cheia de percalços...

Saiu ali

VOTO PELO SEXO, SEMPRE Henrique Araújo henriquearaujo@opovo.com.br Marta, ex-atendente de telemarketing, 27, morena, tatuagem na parte interna da coxa esquerda, explodiu na semana anterior à do pleito. Estavam assistindo a um quadro do sabático “Zorra Total”. Espichados na cama, cada um abraçado a um lençol diferente, o dele com figuras geométricas, o dela salpicado de margaridas, quando a mensagem no celular de Antônio fez soar uma guitarra de Neil Young. Era anônima, e dizia: “Vontade danada de estar ctg. novamente. Um bj daqueles, meu carrapicho”. Antônio é jovem. Tem 22, divide apartamento com Marta há dois anos. Ele paga água e energia, ela faz as compras e cozinha. Ele limpa a casa. Ela organiza a papelada burocrática em pastas – uma para cada área da vida. Ele desenha, ela compõe versinhos que depois lê em recitais da faculdade de Letras, que depois esquece em arquivos de computador. Ele anota nomes de bares num bloco e coleciona cartazes de cinema. Ela sobrepõe marcas de biquín...