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De mãe para filho

Achava que por ter sido bom continuaria sendo indefinidamente, no que incorria em erro severo, nem tudo que parece é, disse repetindo a frase predileta da mãe, uma enfermeira que tinha passado quinze anos casada e outros sete namorando o seu pai, o dele, e, já muito tempo depois da separação, depois mesmo de três filhos que não eram os mais lindos mas eram os seus, os dela, apanhava-se na cozinha considerando o que fizera durante a vida, por que afinal de contas não pediu educadamente logo à primeira vez, logo quando tudo lhe pareceu inequivocamente sem futuro: “Por favor, Marcelo, queira retirar-se desta casa e nunca mais aparecer na minha vida.” Contudo não era melancolia o que alimentava, dizia enquanto retorcia os nós dos dedos. Era uma questão de matemática, quero saber por que passei tanto tempo sem entender que o amor assim como os valores da conta de energia e as marcas de bronzeado se transforma e atravessa extensos encanamentos, quero finalmente poder ilustrar a única mutação...

Para fazer amigos e influenciar pessoas

87. Escolher filmes é diferente de escolher um atum ou um tipo de sabonete. Envolve dezenas de variáveis. É uma ciência tão inexata quando a filosofia e a gastronomia. Quase nunca se sabe o que se quer ver. Em casa, logo às primeiras cenas, descobre-se que a fita certa era aquela que ficara ao lado do bom cinema de aventura e que, por medo, você esqueceu. 51. Domingo é dia oficial do remorso em 97 países. Na Guatemala, por exemplo, é somente aos domingos que milhares de pessoas, rotineiramente frenéticas, costumam ficar em casa e remoer culpas ancestrais com a dedicação de uma puta e a disciplina de um monge. A prática, tão antiga quanto a de sofrer calado, requer alguma habilidade com certo tipo de silêncio que, grosso modo, consiste em falar sem dizer absolutamente nada. 65. Ainda sobre o remorso, que é a culpa insurgente. Há dois anos, a revista britânica Nature publicou ensaio dos mais gabaritados em que dizia, sem meias palavras: sentir-se com remorso elimina pelo menos 130 toxin...

Fato: o dinossauro estava lá

TOMEI CAFÉ COM LEITE E FUI NADAR Francis Santiago Inauguro aqui uma nova modalidade de diversão. Nova, nova, não sei. Mas aparentemente nova, pelo menos. Ou suficientemente nova, creio. De todo modo, inauguro por ora uma modalidade que ao menos em tese deveria interditar a tristeza que é a segunda-feira e injetar não sem alguma dor e também remorso uma dose algo cavalar de fabulação na vida morbidamente conduzida até aqui por nossos mais desonrosos representantes no planeta Terra. Os seres humanos. PRÉ-NOITES DE UMBANDA Começo dizendo que minha pálpebra esquerda tremelica a intervalos regulares sempre que alguém – pronome percorrido por indeterminação – assaz inteligente cede o assento no ônibus a alguma senhora hipoteticamente mais velha que ele e, por suposto, merecedora de descanso, mas, num demonstrativo de sua – dele, que dá ideia de possessão – farta inocência, não checa como deveria a documentação da senhora merecedora, de maneira tal que lança sobre tudo a sua volta, e principa...

Coisa antiga

ENCONTRO DIALÉTICO Será que ela vai mesmo querer sair comigo? Tenho quase certeza. Não preciso de quase nada. Quase entendo. Quero saber de fato se ela vai estar me esperando no lugar e horário combinados. Impossível saber. Nem se falarmos com a amiga dela? Nem se falarmos. Nem se bisbilhotarmos a correspondência dela? Nem isso. E se vasculharmos o lixo dela? Pode ficar doente. Será pior. Se ela for e você não, nunca mais vai querer olhar na tua cara. E se disser que ficou adoentado varrendo o lixo da casa dela... Nem preciso dizer mais nada. Entendo... Mas... Entendo, sim. É bom que você saiba: não há certezas, apenas idéias que parecem certas. O certo são apenas idéias que parecem certas. Isso. Você é sempre muito preciso em suas formulações. Obrigado. E quanto a ela? Que tem? Vai mesmo conhecer a moça? Se ela estiver disposta, sim. Mas, se pelo menos pudesse ter certeza de que ela realmente vai estar lá. Se tivesse certeza, você iria? Não sei. Boa pergunta. Não a tendo, como fica? N...

Revista Aerolândia (avulsos) II

Francis Santiago Adjetivo sofisticado, falsamente esponjoso e bastante usado nos mais diversos círculos do pensamento contemporâneo, da esquerda à direita, “fofo” e suas derivações representam o que há de mais líquido na modernidade. De significado impreciso, a palavra é empregada, por exemplo, para caracterizar o intelectual inorgânico, aquele cujo pensamento, em oposição ao definido por Gramsci, tem sabor menta e cheiro de maracujá, além de consistência de geléia de morango. “Fofo”, por largo uso, abarca um conjunto heterogêneo de fatos e fenômenos. Serve à taxonomia das gentes e lugares. Há um lócus fofo e pessoas fofas. Há também sentimentos fofos, cidades mais ou menos fofas etc. Um lugar bem fofo em Fortaleza: Passeio Público (ver feijoada aos sábados). Outro lugar fofo: Arlindo. Uma avenida fofa: 13 de Maio. Outra: Dom Luís. Mais uma, esta por oposição: Duque de Caxias (ver Disney Lanches). Um suco fofo: abacaxi com hortelã. Um cinema fofo: Dragão do Mar. Um lazer fofo: qualqu...

Revista Aerolândia (avulsos)

Damião Daschemberg Três eventos aparentemente desconexos ocuparão o mesmo palco em Fortaleza em outubro próximo. Dois deles já podem ser conferidos agora, em apresentação solo, mas a fantástica conjunção do Seminário Preparatório ao Fórum Transnacional da Emancipação Humana, o Festival de Teatro Transcendental e a programação oficial do centenário do Theatro José de Alencar, uma mistura que promete transgredir as normas já cristalizadas da cultura e da política, só daqui a quatro meses. O espectador mais entusiasmado tem de se conformar e esperar outubro para investigar os limites da perspicácia cearense. O cenário dessa festa estrepitosa que celebra a energia cosmicamente superior produzida no lobo frontal não poderia ser outro. Após receber meio milhão de investimento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Gigantão da Zé Bastos deverá estar pronto a tempo de receber essa improvável sinergia cultural e metafísica. Nunca antes na história do Ceará militantes políticos engaja...

Sobre molecagem e narizes arrebitados

Como está a vida? Muito boa. O corpo pede socorro. Tenho as duas mãos inutilizadas por causa de uma década inteira batucando teclados de computador. Descobri que o joelho direito não suporta mais um domingo no parque, subindo e descendo escadarias. As costas também dão sinal de cansaço. Trinta anos querem dizer isso mesmo? Escrevo porque preciso esticar os dedos. Do contrário, eles ficam encolhidos, e não servem sequer para trabalhar. Abaixo, algumas edições da revista Aerolândia, uma parceria que deu certo por oito semanas mas, nos últimos dias, vinha fazendo água. Como disse o outro: as pessoas se cansam. Reconheci. A revista era um brinquedo. Foi divertido vê-la nas mãos imaginárias de leitores esse tempo inteiro. Foi mais divertido ainda fazer troça com a cidade, sem, em qualquer instante, levar a sério nem a nós mesmos. Deus, como encarar com alguma gravidade uma coletânea de textos publicada na internet sob nomes como Deusimar de Deus, Deusdete e Ruilivínio? Ainda assim, muita ge...