Pular para o conteúdo principal

Revista Aerolândia (avulsos)


Damião Daschemberg

Três eventos aparentemente desconexos ocuparão o mesmo palco em Fortaleza em outubro próximo. Dois deles já podem ser conferidos agora, em apresentação solo, mas a fantástica conjunção do Seminário Preparatório ao Fórum Transnacional da Emancipação Humana, o Festival de Teatro Transcendental e a programação oficial do centenário do Theatro José de Alencar, uma mistura que promete transgredir as normas já cristalizadas da cultura e da política, só daqui a quatro meses. O espectador mais entusiasmado tem de se conformar e esperar outubro para investigar os limites da perspicácia cearense.

O cenário dessa festa estrepitosa que celebra a energia cosmicamente superior produzida no lobo frontal não poderia ser outro. Após receber meio milhão de investimento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Gigantão da Zé Bastos deverá estar pronto a tempo de receber essa improvável sinergia cultural e metafísica. Nunca antes na história do Ceará militantes políticos engajados na extinção do dinheiro, da casquinha e do PS III, uma trupe de atores ímpios e um seleto grupo de clowns de Chico Xavier tiveram a chance de dividir o mesmo tablado. “Será algo ainda maior que qualquer apresentação de Zé Celso. Algo maior que a gravação do DVD ao vivo do Aviões”, antecipa João das Graças Chiavillito, um dos organizadores.


Entretanto, o que esperar da inusitada mistura da teoria crítica radical com a doutrina de Alan Kardec e os preceitos do grego Sófocles? É o que muita gente se pergunta, mas pouca consegue responder. Karlos Kaam (escritor, cineasta, vereador e idealizador da empreitada artística) garante que a atividade liberará camadas de sentimento e afeto escondidas na sociedade cearense. “Seremos capazes de ver luzes se desprender do auditório-arena do Gigantão, ao passo que toda a nossa geração será marcada por uma profunda aceitação da singularidade do indivíduo e pela rejeição imediata a toda forma de poder”, futura. A abertura das comportas da mente, algo como um segundo mergulho no LSD, agora sem recorrer a qualquer artifício sintético, terá dia marcado: 31 de outubro. E público estimado em um milhão de pessoas, o mesmo esperado a cada réveillon no aterro da Praia de Iracema.

Graco Graciano Galante, militante anticapital, anti-interior e antirregião metrolitana, vê ganhos reais para a luta da emancipação ao se enturmar com outras formas de manifestação do engenho humano. “Todo dia, a roda do dinheiro esturrica mais e mais almas abestadas. É algo inexorável. Agora, é diferente. Nosso movimento contrário pode ser tão forte quanto as forças do capital. Nem que para isso tenhamos de apelar às pulsações de vitalidade política que venham do além”, desafia Galante, para quem a emancipação do homem transcende o corpo, a física, a química e a biologia. “Posta em termos radicais, nossa crítica pretende libertar até os miseráveis microorganismos subjugados nas lonjuras das fossas abissais por colônias de corais inescrupulosas.”

Reformado, o Gigantão, que já foi arena de gladiadores do funk nos distantes anos de 1980, agora é equipado com estrutura que o credencia a receber shows, missas pop, feiras de livros, desfiles de passarela, exposições de animais, casamentos, batizados e aniversários de 15 anos. Davi Davison Duarte é o empresário responsável pelo renascimento desse ícone. “Investimos pesado no Gigantão. Fortaleza precisava de uma casa de show mais dinâmica, e ele cumpre esse papel.” Segundo Duarte, a vocação multifacetada do espaço permite que os mais diversos públicos, das classes AAA até a EEE, possam curtir um “ambiente sofisticado, glamouroso, mas também popular”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d