Pular para o conteúdo principal

Fato: o dinossauro estava lá

TOMEI CAFÉ COM LEITE E FUI NADAR

Francis Santiago

Inauguro aqui uma nova modalidade de diversão. Nova, nova, não sei. Mas aparentemente nova, pelo menos. Ou suficientemente nova, creio. De todo modo, inauguro por ora uma modalidade que ao menos em tese deveria interditar a tristeza que é a segunda-feira e injetar não sem alguma dor e também remorso uma dose algo cavalar de fabulação na vida morbidamente conduzida até aqui por nossos mais desonrosos representantes no planeta Terra.

Os seres humanos.

PRÉ-NOITES DE UMBANDA

Começo dizendo que minha pálpebra esquerda tremelica a intervalos regulares sempre que alguém – pronome percorrido por indeterminação – assaz inteligente cede o assento no ônibus a alguma senhora hipoteticamente mais velha que ele e, por suposto, merecedora de descanso, mas, num demonstrativo de sua – dele, que dá ideia de possessão – farta inocência, não checa como deveria a documentação da senhora merecedora, de maneira tal que lança sobre tudo a sua volta, e principalmente sobre a senhora, uma nebulosa de interrogações que oprime a consciência pós-modorrenta deste narrador enfatuado às nove horas da manhã de uma segunda-feira.

Digo isso somente porque cavalheiro que sou e extremoso ao extremo e ainda cumpridor de meus deveres civis imagino que para o senhor jovem que se ergue a custo da cadeira e contra todas as recomendações do próprio corpo exaurido deixa vago o lugar, o ato em si de cessão pouco ou nada representa face à noção prazenteira do retorno social do gesto. Insisto em afirmar em miúdos e bom português o que a ciência social mais chata vem assinalando há décadas, que o ato comportamental da pessoa humana ser humano é marcadamente interessado em algum tipo de retorno social cuja importância é diretamente proporcional aos dividendos que dele possam advir.

Dou exemplos. O cachorro só late porque tem fome, o bebê só chora porque quer mamar. Assim, o sujeito homem só ri com todos os dentes quando pretende amealhar algum farrapo qualquer de benfazejo retorno, o que, nem tanto pela coisa em si, mas pela coisa fora de si, lhe permitirá entre seus pares pavonear-se como aquele que ri e ganha, ao passo que os demais serão vexatoriamente induzidos a crer que o riso cínico do macaco que quer mamar é regra e não exceção e se esquecerão da lição mais básica das autoescolas automotivas: comece sempre com a primeira marcha.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d