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Passo a passo

Publicado em 11 de maio de 2011  E se eu me chamasse Perseu e você Ester? Quase não consigo imaginar no que essas alterações resultariam. Talvez em nada, mas talvez tudo fosse diferente e nós, pense bem nisso, nós seríamos outros. As brigas que tivemos até aqui, inclusive a de ontem, respeitariam uma regra estranha, e cada detalhe seria novo detalhe, equivalente ao anterior em qualidade mas substancialmente distinto, o que nos levaria a pensar de maneira algo pessimista que não vale a pena persistir nas mudanças. Estaríamos apenas parcialmente corretos. Isso é menos um fato que uma crença. Duvido que as diferenças façam tanta diferença ao final, e digo isso sem pensar mais que dois segundos no assunto. Nunca fazem. Não é o mesmo que - “estamos no mesmo barco, relaxem”. Não o mesmo que admitir: tudo bem, não há desnível, vincos sociais ou ranhuras na superfície ideal.  Vejam, como déspota esclarecido, não tolero o relativismo absoluto.  “Queria ser tão claro quanto me foss...

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são...

De espigões e mausoléus

Pensei em começar falando dos espigões privê e da estética plástico-temperada, da mistura do granfinismo com o mau gosto bem dosados, do creme de leite afogando o camarão que substituiu a peixada em água grande. Mas desisti no meio do caminho, parte pelo cansaço, parte pelo receio de ceder ao saudosismo mais chinfrim, parte porque não teria nada de novo a dizer que já não tenha dito antes sobre o mesmo pedaço de chão da cidade. Um pedaço disputado, remodelado e precificado à exaustão, reimaginado, demarcado e leiloado, derrubado e erguido em tempo recorde, nesse escambo de velharias. Uma usina de autoimagem cujas caldeiras nunca se apagam. A metrópole como essa página em branco na qual os gestores escrevem o que lhes dá na telha, e ninguém se interessa se o fazem por bem ou apenas porque inventam sempre de rabiscar uma marca. Ainda que essa “marca”, o grafismo torto que é também uma fratura, seja a do malfeito com ares de benfeitoria, do improviso com pretensão de planejado. Pensei que...

A sua pior versão

Ouço com frequência a frase encorajadora “seja a sua melhor versão”, de modo a sugerir que o ouvinte se apresente com uma roupagem mais interessante, performando em chave estética suas ambições existenciais e profissionais. Uma versão não substantivamente diferente, é verdade, mas em aparência mais atraente do que a versão inferior, numa operação que é mais de customização de personalidade do que de autoaprendizado ou qualquer modalidade que requeira maturação. E é isso, de fato, que é mais curioso nessa história: que tenha prosperado a crença, ainda que limitada a certos discursos gerenciais, em que possa haver edições distintas de si mesmo, como um aplicativo que fosse gradualmente aprimorado e lançado para a venda, substituindo o modelo anterior, que logo também estará defasado e predisposto ao descarte, inservível para o que vem pela frente. Uma obsolescência programada do próprio eu, feito de material volátil, fluido e barateado. Num dia, molda-se a tal ou qual novidade, turbin...

Eterno presente

  No filme da vez, que é uma espécie de programa natalino da Netflix, a suspensão do presente se dá com a interrupção do desfecho da série predileta. Sem conexão de internet, o tempo se coagula, e a personagem da trama se vê desamparada, impedida de consumir o ato derradeiro da história ficcional celebrando laços entre amigos irreais. Os pais, um casal moderadamente progressista, se deslocam em conforto no espaço (da cidade para o subúrbio) para experimentar essa pausa na rotina. Um éden provisório, de lazer, descanso e contato com uma experiência viva sob demanda, estudadamente rústica, como esses chalés de luxo no litoral cearense que prometem elos com o mundo natural sem sair dos muros que cercam o empreendimento. Tudo é largo e estreito, perfeito e falho, bonito e feio. Até que a falta de acesso instaura uma janela caótica. A fratura da comunicação é apenas indiciária do colapso por vir, que já está em toda parte, rizomático, nos signos mais elementares: animais comporta...

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabal...

As letras do seu nome

Pensei em lhe escrever uma carta, mas tive dúvidas se a receberia antes ou depois do Natal, como às vezes acontece com essas missivas remetidas de outro lugar para um ainda mais distante e que, mesmo urgentes, ficam para depois. No meio da consulta, o médico prometeu que logo iríamos telefonar para você, arrancando um risinho da sua mãe, cuja barriga começava a despontar. Para mim, no entanto, a imagem que se havia formado era a de nós dois espremidos numa cabine telefônica esperando, aflitos, que você atendesse do outro lado da linha. Um fio, assim como uma linha, é uma continuidade de pontos tracejados e coadunados que institui formas de vida diversas, ligadas no ato de transbordamento de material. “Tudo que é vivo vaza da sua forma”, acordei outro dia e essa frase estava flutuando num balão de palavras dentro da minha cabeça. Não sei se a li em outro canto ou se, como um filamento sinuoso que vai atando as superfícies, passou por mim como esse pulso que o médico garantiu que ouv...