No filme da vez, que é uma espécie de programa natalino da Netflix, a suspensão do presente se dá com a interrupção do desfecho da série predileta. Sem conexão de internet, o tempo se coagula, e a personagem da trama se vê desamparada, impedida de consumir o ato derradeiro da história ficcional celebrando laços entre amigos irreais.
Os pais, um casal moderadamente progressista, se deslocam em conforto no espaço (da cidade para o subúrbio) para experimentar essa pausa na rotina. Um éden provisório, de lazer, descanso e contato com uma experiência viva sob demanda, estudadamente rústica, como esses chalés de luxo no litoral cearense que prometem elos com o mundo natural sem sair dos muros que cercam o empreendimento. Tudo é largo e estreito, perfeito e falho, bonito e feio.
Até que a falta de acesso instaura uma janela caótica. A fratura da comunicação é apenas indiciária do colapso por vir, que já está em toda parte, rizomático, nos signos mais elementares: animais comportando-se estranhamente, investindo contra os humanos, enquanto as pessoas se tribalizam em defesa da própria vida, pistas cada vez mais evidentes de que a ordem como se conhecia acaba de ruir.
É o eterno presente, sem passado nem futuro, parado entre uma cena e outra do capítulo final, que carece agora de ser preenchido com algo significativo. O adolescente narcísico ignora os perigos de derredor e as demandas afetivas da irmã; a mãe escancara seu racismo mal contido sob camadas de polidez; e o pai meio intelectual e meio de esquerda se descobre inútil sem auxílio do GPS.
Expectante, a jovem projeta essa espera, à mercê do deserto conectivo que se estabeleceu e que desde então bloqueia a funcionalidade da qual a vida contemporânea depende. Sem ela, o mundo desaba, navios encalham, aviões despencam, mas o elemento vital continua ausente – o sinal se perdeu.
De certo modo, trata-se de uma obra-sintoma que sintetiza o modelo ao qual pretende criticar – discursivamente “pronta pra desagradar”, mas motivada pela audiência. É filha do mesmo espírito do videoclipe de Manu Gavassi, que desidrata a crítica para fazê-la circular e se vender com mais facilidade como produto sem, contudo, perder a sua aura artística, importante como emblema no circuito de apreciação.
De leitura fácil, cifrado com uma legibilidade mais epidérmica e empacotado com essa embalagem cujo significado as redes sociais adoram decifrar, “O mundo depois de nós” é um produto da mutabilidade do sistema e da sua capacidade de converter o estado falimentar do planeta em lucro, extraindo a matéria que ainda resta. É a gamificação do desastre.
Afinal, do cinema à literatura, o apocalipse nunca foi tão rentável quanto hoje, época em que os líderes do G8 se reúnem apenas para deixar exposto que não há solução política à vista para o precipício logo adiante e os super-ricos começam a preparar suas fortificações diante do fim iminente (vide Zuckerberg e sua mansão-bunker).
Daí os milhares de cortes “explicando” o final do filme, exatamente a conduta que a trama, na sua caricatura muito palatável, procura ridicularizar, mas cujo efeito provocado é o inverso, ou seja, o mergulho no virtual se aprofunda à medida que o desfecho se aproxima e o perigo se encontra a um palmo no nariz, como o petroleiro que avança areia adentro.
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