O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto.
Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos.
A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada?
Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho de repor qualquer princípio no manuseio dessas imagens. Fotografias mantidas para lembrar, destinam-se hoje ao esquecimento, como se, na esteira da falta dos avôs (as ausências-presentes), tudo o mais carecesse de verossimilhança e materialidade. Tudo perdido por contaminação.
Mas é possível que esteja atribuindo importância demasiada a esses homens infames, e ninguém sequer lhes dedique um pensamento qualquer no restante da família além de mim. As mulheres certamente não. Ao menos não minha avó, que já morreu. Ou minha mãe, a quem pergunto como seu pai se chamava. Ela hesita – quem não se lembraria do nome do pai? Revela-o a custo, sílaba a sílaba.
É um estranho, eu penso. Passam-se dias, e, sem que eu lhe falasse mais nada, a mãe enviará uma imagem do avô pelo WhatsApp. Abro o nosso canal de diálogo, e está ali: na foto, um ano anotado com caneta – 1980. O ano de meu nascimento foi também o de sua morte. O rosto enrugado, olhos como cortes feitos com estilete em material amolecido, uma calva semelhante à minha, o nariz pronunciado talvez já visto em outros semblantes próximos. Uma matriz estragada. Retrato de um desmoronamento.
Há um autor para quem o “álbum de retratos constitui a memória oficial da família”, espécie de trama através da qual “possamos justificar o tempo passado e a sua coerência”. Reflito sobre isso: o álbum como justificativa da própria família, uma coleção de indícios fotográficos que atestem a passagem de um grupo de pessoas cujos elos são de parentesco – o nosso elo, sua organicidade e pertinência.
Se o álbum se esboroa e fraqueja, é então a própria família que adoece. O adoecimento do álbum é a sintomatologia de todos. Seu estado geral de precariedade é o nosso. Sua incapacidade em reconstituir uma narrativa é a nossa dificuldade em reagregar os dispersos, pondo fim ao silêncio e exorcizando esses fantasmas que orbitam a imagem dos vivos.
Nada em nosso álbum indica que os espectros desses entes masculinos ainda estejam ali, mas eles assombram. Conversam com seus leitores, falam ao ouvido, sopram de longe. Estão lá, existindo como falta, narrando o não narrado que segue como história por vir.
O apagamento do masculino performado no álbum seria não um equívoco, mas uma correção na linha do traçado da família, que só poderia continuar mediante a condição de deixá-los para trás, de esquecê-los, de fazê-los sumir com seus nomes, idades, números de identificação, registros, histórias pessoais, marcas de distinção, se tinham olhos azuis ou castanhos, se eram altos ou baixos, gordos ou magros. Em suma, fazê-los fantasmas e, como tais, bani-los.
Exumá-los, como faço aqui, não seria o mesmo que incorrer num ato contra os interesses da família, que se encarregou de depositar esses nomes numa gaveta de um móvel muito velho e lá deixá-los por todo esse tempo?
Essa é uma questão que me coloco, na condição de filho/neto, ou seja, se me cabe revolver o passado enquanto já o revolvo, de modo a revivê-lo e assim fazê-lo reviver dentro de casa, dando contornos a dois rostos já assentados noutro tempo, justificando indiretamente a sua existência, trazendo-os para perto de mim e da minha própria família, perfazendo então o oposto do movimento que supus estivesse na origem deste ato de revisita e atando fios que pretendia manter afastados.
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