Pensei em lhe escrever uma carta, mas tive dúvidas se a receberia antes ou depois do Natal, como às vezes acontece com essas missivas remetidas de outro lugar para um ainda mais distante e que, mesmo urgentes, ficam para depois.
No meio da consulta, o médico prometeu que logo iríamos telefonar para você, arrancando um risinho da sua mãe, cuja barriga começava a despontar. Para mim, no entanto, a imagem que se havia formado era a de nós dois espremidos numa cabine telefônica esperando, aflitos, que você atendesse do outro lado da linha.
Um fio, assim como uma linha, é uma continuidade de pontos tracejados e coadunados que institui formas de vida diversas, ligadas no ato de transbordamento de material.
“Tudo que é vivo vaza da sua forma”, acordei outro dia e essa frase estava flutuando num balão de palavras dentro da minha cabeça. Não sei se a li em outro canto ou se, como um filamento sinuoso que vai atando as superfícies, passou por mim como esse pulso que o médico garantiu que ouviríamos na chamada dali a pouco.
Quem chega primeiro a seu destino, uma carta de amor ou um telefonema cheio de expectativa? É no mergulho no mundo que as coisas são trazidas à sua própria existência.
Depois do almoço, ponho a mão na barriga da sua mãe e tento senti-la centímetros adentro, deslizando ainda suave em movimentos cada vez mais expandidos. Tudo cresce tão rápido, células se multiplicam, unhas se formam, os lábios se projetam, os dedos se espicham. Um peixe-menina, uma menina-peixe. Como se chama?
Onde quer que exista vida, toda separação é permeável, e a conexão se faz por meio desse mapa de poros e outros canais que comunicam o lado de lá e o de cá. Céu e terra sempre se misturam, deles não havendo corte real. As linhas são imaginárias.
Mesmo já tendo passado por isso antes, pergunto ao médico se o bebê pode sentir o tato, a mudança de temperatura quando encostamos os dedos pouco acima do umbigo, se sua pele já é sensível aos estímulos que vêm de fora, se escuta minha voz e consegue discernir os de casa.
Mas o senhor de jaleco se distrai facilmente, ignorando minhas apreensões de pai. Logo quer saber o nome. “Helena” e “Elena”, respondemos ao mesmo tempo. Com ou sem “h”?, ele insiste. Não sabemos ainda.
Ceci, que acompanhava tudo num canto da mesa, bate o martelo, arbitrando o conflito com a autoridade de irmã mais velha: “É sem ‘h’, doutor médico”, acentuando a formalidade no tratamento e cobrindo a decisão com um ar de solenidade muito curioso para uma criança de nove anos.
“Fluido é circulação”, acho que o médico murmurou enquanto separava um aparelho com que a ouviríamos do outro lado, um dentro provisório, você aí e a gente aqui. Na hora, duvidei que fosse possível captar qualquer ruído com esse apetrecho que lembrava um brinquedo usado e inservível.
Mas o “doutor médico” o manuseava com segurança e destreza. Espalhou gel na barriga da sua mãe e, como um desses cientistas que procuram sinais emitidos no espaço sideral, começou a vasculhar cada pedaço do vasto mundo habitado unicamente por você.
Passaram-se alguns segundos e nada, um tempo sem tamanho durante o qual me vi tenso, apertando o braço da cadeira com um pouco mais de força. Os terrores do vazio e do silêncio são sempre os piores.
Veio, em seguida, o sinal. Uma composição ritmada, conjunto de batidas característico da vida em formação. Na tela, o desenho de um fio entrecortado por picos sonoros – o som do seu coração, filha.
Então você é Elena, eu disse a mim mesmo antes de enviar essa carta que é um fio que é um mapa que é uma linha desenhando as letras do seu nome.
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