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Eterno presente

  No filme da vez, que é uma espécie de programa natalino da Netflix, a suspensão do presente se dá com a interrupção do desfecho da série predileta. Sem conexão de internet, o tempo se coagula, e a personagem da trama se vê desamparada, impedida de consumir o ato derradeiro da história ficcional celebrando laços entre amigos irreais. Os pais, um casal moderadamente progressista, se deslocam em conforto no espaço (da cidade para o subúrbio) para experimentar essa pausa na rotina. Um éden provisório, de lazer, descanso e contato com uma experiência viva sob demanda, estudadamente rústica, como esses chalés de luxo no litoral cearense que prometem elos com o mundo natural sem sair dos muros que cercam o empreendimento. Tudo é largo e estreito, perfeito e falho, bonito e feio. Até que a falta de acesso instaura uma janela caótica. A fratura da comunicação é apenas indiciária do colapso por vir, que já está em toda parte, rizomático, nos signos mais elementares: animais comporta...

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabal...

As letras do seu nome

Pensei em lhe escrever uma carta, mas tive dúvidas se a receberia antes ou depois do Natal, como às vezes acontece com essas missivas remetidas de outro lugar para um ainda mais distante e que, mesmo urgentes, ficam para depois. No meio da consulta, o médico prometeu que logo iríamos telefonar para você, arrancando um risinho da sua mãe, cuja barriga começava a despontar. Para mim, no entanto, a imagem que se havia formado era a de nós dois espremidos numa cabine telefônica esperando, aflitos, que você atendesse do outro lado da linha. Um fio, assim como uma linha, é uma continuidade de pontos tracejados e coadunados que institui formas de vida diversas, ligadas no ato de transbordamento de material. “Tudo que é vivo vaza da sua forma”, acordei outro dia e essa frase estava flutuando num balão de palavras dentro da minha cabeça. Não sei se a li em outro canto ou se, como um filamento sinuoso que vai atando as superfícies, passou por mim como esse pulso que o médico garantiu que ouv...

Desencantamento do mundo

  Há dias me vi tragado por essa espiral cuja vertigem é uma artista (uma cantora bilionária do norte global) que, não sei se por traço da adicção digital de hoje em dia ou de um milenarismo de rede, arrasta uma multidão predisposta a celebrá-la como marca e pessoa, como CPF e CNPJ, como criadora e performance de si ao mesmo tempo. Nesses momentos de transe ritual no qual se transformam as apresentações, que evocam eras como se o tempo entre uma produção e outra se processasse numa escala descolada do referencial terreno – o que colabora para a magnificação dessa ideia de grandiosidade a-histórica –, firma-se o que só pode ser entendido como uma fetichização da transcendência. A artista é consumida, e não somente sua música, como passaporte para esse outro mundo. Mundo menos material e mais folclórico, com filtros e texturas que imprimem a sua existência uma camada esotérica e impalpável. A indústria cultural, como campo autônomo e produtor de símbolos que se replicam como memes fa...

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es...

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas ...

O último raio de sol

  De repente, o elevador para, mais ou menos como uma SUV que morresse no sinal de um desses cruzamentos da cidade nobre. É sábado. Ou talvez quinta-feira, dia de caranguejo na praia, de sucção de delicadas patinhas e carapaças se desmanchando num satisfatório crac-crac. O sol cai indolente, filtrado por fachadas de vidro temperado naquele arrondissement fortalezense de boas casas e apartamentos avarandados de cara para o mar de verdes águas. Alguém suspira, soprando o ar enquanto checa o sinal do celular dentro do elevador estancado já havia quase meia hora, na metade do percurso até a cobertura. Não há desespero nem aflição, apenas a tediosa certeza de que, mais cedo ou mais tarde, o aparelho enguiçado será recuperado e todos sairão dali para degustar uma vista privilegiada. Ao menos era isso que prometia o folheto enviado por mensagem dias antes a um grupo selecionado de pessoas, entre influenciadores e até possíveis compradores de unidades avaliadas em muitos milhões. “O último...