Pular para o conteúdo principal

Cansaço novo


Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando.

Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre.

Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades.

E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde.

Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas por perna de quem já conheça os caminhos das pedras.

Mas sigo no rumo, agora convencido de que esse paralelo com o cangaço tem lá a sua valia, ainda que muito cifrada. Afinal, a série televisiva, essa em exibição num canal qualquer, é releitura amodernada de fenômeno verdadeiro: o banditismo de meados do século passado, quando levas de encourados percorriam os sertões pilhando gentes e autoridades, impondo o regime do medo e da mansidão obediente.

O novo cangaço, por sua vez, é a transposição para o agora desse registro social e cultural. Uma releitura, digamos assim, cheia de licença poética e extravagâncias com que se deseja abarcar uma pletora de elementos e variáveis, mas para cuja resolução se dá cabo meramente adicionando o adjetivo mágico: novo.

Vale para o produto, vale para a série, vale para a cultura de maneira geral, ainda que embutam práticas de velharia, de oligarquia e preservação daquela cota de poder que se amplia ao ponto de se pretender dominante e consensual. O cangaço é novo, mas o feitio da estrutura é passadiço.

Daí o cansaço, que não é outra coisa senão a saturação do padrão, uma preguiça de dar na vista. Porque mesmo o jovial e o recém-chegado se apresentam como velho no que tem de pior, espelhando-se nos modelos já corroídos como esquemas de gestão da coisa política, como visão de mundo e princípio de atuação, como régua moral e administrativa.

O cansaço é novo, mas é também novidadeiro, porque é ciclo repetido e mantido, tido e havido, a despeito da roupagem com que se apresente nos bailes e convescotes de salão da mocidade, dos slogans e penduricalhos com que se adorne nos festejos da terra e nas celebrações do calendário. 

A veste desgastada posta em uso, remendos à mostra; os mesmos maneirismos de bajulação a entreter os encastelados da vez; o mesmo apetite para avançar em tudo, sem brechas nem apoucamento diante do que talvez até merecesse certo pudor.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d