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A mancha


Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica.

Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia.

A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde.

Não me detenho na esgrima retórica que antecipa disputas em torno do poder, mas no fato irônico e nada casual de que um dos emblemas da orla da cidade turística de Nossa Senhora da Assunção seja um monumento ao esgotamento sanitário.

Isso mesmo. Aquilo a que os mais antigos chamavam, na sua chacota já usual e ingenuamente salutar de quem não sabia que o pior estava por vir, de “chifre do governador”.

Ou seria do prefeito? Não lembro, tinha apenas cinco anos quando, de olho arregalado e braço dado com a mãe, parei diante do que se assemelhava a um cigarro em proporções agigantadas, todo metálico, com uma curvatura em ângulo suave que o aproximava de pista de decolagem. Era o que então imaginava, jamais pensei que se tratasse de obra púbica, menos ainda de arte.

Numa cidade capaz de celebrar a coleta de substância repulsiva, a captura regular de esgoto é de usufruto de pouquíssimos, que não carecem de ver fluir sob os próprios pés uma correnteza de detrito do qual talvez preferissem apenas se livrar, dando-lhe as costas.

Mas ali está o interceptor oceânico, um hub escatológico antes de todos os outros, ponto de afluxo das fezes tratadas dos fortalezenses, fazendo par com outros signos de aterramento, tais como a própria praia e os tantos espigões, todos pertencentes a uma mesma família de intervenções governamentais cujo objetivo sempre foi varrer as sujeiras de toda espécie e origem para debaixo do tapete (ou para dentro do mar), remendando o problema mediante improviso e gambiarra.

Afinal, umas três ou mais décadas depois, quase tudo segue como antes, com baixa cobertura nos bairros mais distantes daquele pedaço de chão asseado da Beira Mar, o mesmo dos superprédios cuja superpopulação não terá de se preocupar se seu cocô vai ser catapultado para além-mar, em jatos invisíveis, longe da estupefação diante do pôr do sol.

E tudo se dá assim, in natura, numa metrópole desigual até quanto às possibilidades de ter o laborioso resultado das múltiplas defecações devidamente recebido e encaminhado a local apropriado. Daí que se diga, também em tom de galhofa, que a verdadeira história de Fortaleza não corre por cima da terra, mas abaixo, nas galerias, rios enterrados e fossas que irrompem de tempos em tempos, a cada novo inverno.

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