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As letras do seu nome

Pensei em lhe escrever uma carta, mas tive dúvidas se a receberia antes ou depois do Natal, como às vezes acontece com essas missivas remetidas de outro lugar para um ainda mais distante e que, mesmo urgentes, ficam para depois. No meio da consulta, o médico prometeu que logo iríamos telefonar para você, arrancando um risinho da sua mãe, cuja barriga começava a despontar. Para mim, no entanto, a imagem que se havia formado era a de nós dois espremidos numa cabine telefônica esperando, aflitos, que você atendesse do outro lado da linha. Um fio, assim como uma linha, é uma continuidade de pontos tracejados e coadunados que institui formas de vida diversas, ligadas no ato de transbordamento de material. “Tudo que é vivo vaza da sua forma”, acordei outro dia e essa frase estava flutuando num balão de palavras dentro da minha cabeça. Não sei se a li em outro canto ou se, como um filamento sinuoso que vai atando as superfícies, passou por mim como esse pulso que o médico garantiu que ouv...

Desencantamento do mundo

  Há dias me vi tragado por essa espiral cuja vertigem é uma artista (uma cantora bilionária do norte global) que, não sei se por traço da adicção digital de hoje em dia ou de um milenarismo de rede, arrasta uma multidão predisposta a celebrá-la como marca e pessoa, como CPF e CNPJ, como criadora e performance de si ao mesmo tempo. Nesses momentos de transe ritual no qual se transformam as apresentações, que evocam eras como se o tempo entre uma produção e outra se processasse numa escala descolada do referencial terreno – o que colabora para a magnificação dessa ideia de grandiosidade a-histórica –, firma-se o que só pode ser entendido como uma fetichização da transcendência. A artista é consumida, e não somente sua música, como passaporte para esse outro mundo. Mundo menos material e mais folclórico, com filtros e texturas que imprimem a sua existência uma camada esotérica e impalpável. A indústria cultural, como campo autônomo e produtor de símbolos que se replicam como memes fa...

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es...

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas ...

O último raio de sol

  De repente, o elevador para, mais ou menos como uma SUV que morresse no sinal de um desses cruzamentos da cidade nobre. É sábado. Ou talvez quinta-feira, dia de caranguejo na praia, de sucção de delicadas patinhas e carapaças se desmanchando num satisfatório crac-crac. O sol cai indolente, filtrado por fachadas de vidro temperado naquele arrondissement fortalezense de boas casas e apartamentos avarandados de cara para o mar de verdes águas. Alguém suspira, soprando o ar enquanto checa o sinal do celular dentro do elevador estancado já havia quase meia hora, na metade do percurso até a cobertura. Não há desespero nem aflição, apenas a tediosa certeza de que, mais cedo ou mais tarde, o aparelho enguiçado será recuperado e todos sairão dali para degustar uma vista privilegiada. Ao menos era isso que prometia o folheto enviado por mensagem dias antes a um grupo selecionado de pessoas, entre influenciadores e até possíveis compradores de unidades avaliadas em muitos milhões. “O último...

Da ponte se vê a cidade

  Deixo de lado essas metáforas até cafonas sobre a ponte como elemento arquitetônico que conduz de um lugar a outro, estabelecendo nexos entre regiões separadas de um mesmo território geográfico e político, ligando porções de terra de repente abreviadas por um abismo físico. Me concentro na ponte como essa plataforma de contemplação e laboratório visual de uma cidade cuja história se deu de costas para o mar, enquanto seus canhões, instalados na entrada do forte que a resguardava, apontavam para os de casa. Os poderosos sempre desconfiados de que o risco maior estava representado no âmbito doméstico, e não em quem chegava para pilhar, como ainda fazem hoje no mesmo litoral da capitania, numa recolonização do espaço movida a energia eólica e a resorts de luxo. Nessa história, o nativo assusta mais que o forasteiro. A vista da ponte está vendada sabe-se Deus há quanto tempo, eu mesmo não lembro quando estive pela última vez pisando as tábuas em falso do lugar, que se mantém de pé a ...

Monstros do ar

  Talvez fosse o caso de descrever a paisagem, falar com calma sobre as pedras, os coqueiros, o movimento hipnótico das hélices girando ao longe, guardiãs de algum segredo escondido por trás das dunas. Como grandes monstros, titãs de prontidão, as pás mecânicas de um ventilador como asas de uma criatura cujo corpo se enterra sob a brancura da areia. Vislumbro as hélices e penso em caminhar até elas, mas é tarde ou cedo ainda, não sei. O sol esquenta as costas, o mato crescido arranha as pernas, vejo uma cerca e me aproximo, mas desisto de continuar. Agora que estou mais perto, ouço o vento cortado, um sulco no ar aberto com essa força fantasmática. Cataventos monstruosos, desses de sonhos intranquilos. Como as hélices chegaram até ali, quem as colocou, o que fazem quando para de ventar? Quem as plantou, de que semente vieram? Parecem ter vida própria, prestes a sair andando num passo longo com o qual me alcançariam ainda que eu corresse em direção à água e mergulhasse de cabeça no ...