Talvez fosse o caso de descrever a paisagem, falar com calma sobre as pedras, os coqueiros, o movimento hipnótico das hélices girando ao longe, guardiãs de algum segredo escondido por trás das dunas.
Como grandes monstros, titãs de prontidão, as pás mecânicas de um ventilador como asas de uma criatura cujo corpo se enterra sob a brancura da areia.
Vislumbro as hélices e penso em caminhar até elas, mas é tarde ou cedo ainda, não sei. O sol esquenta as costas, o mato crescido arranha as pernas, vejo uma cerca e me aproximo, mas desisto de continuar.
Agora que estou mais perto, ouço o vento cortado, um sulco no ar aberto com essa força fantasmática. Cataventos monstruosos, desses de sonhos intranquilos.
Como as hélices chegaram até ali, quem as colocou, o que fazem quando para de ventar?
Quem as plantou, de que semente vieram?
Parecem ter vida própria, prestes a sair andando num passo longo com o qual me alcançariam ainda que eu corresse em direção à água e mergulhasse de cabeça no fundo do mar muito verde e sem ondas.
O pescoço delgaçado perscrutando o horizonte, mariscando homem em meio às pedras, cavoucando as locas a ver se encontram um bicho com tais e tais características.
Delas eu saberia apenas pela respiração compassada, uma corrente de ar que atravessasse a persiana de metal metros acima de mim. E do buraco não sairia enquanto estivessem ali, feito sentinelas, tubarão avançando insidioso enquanto a música soa ao fundo pressagiando o ataque.
Depois, apenas depois, eu as enfrentaria no seu território, as dunas encantadas por onde ninguém anda, as terras do calor e do frio cuja geografia se transforma do dia para a noite, como um labirinto que se inventa sozinho, sem a necessidade de que o coloquem em cena.
A mobilidade é a sua camuflagem. Hoje estão aqui, amanhã acolá e depois de amanhã já não se sabe. Dunas migrantes no dorso das quais as hélices se deslocam como se a cavalo de galope, sempre à procura de algo para se alimentar, perna ou braço de um Ahab desorientado que errasse a esmo por ali.
Devoradoras de tudo, do tempo e do espaço. Sugam a vida em derredor, um sumidouro de matéria. Buracos criados em casa mesmo.
Num dia estão perto da ruazinha de pedras, no outro já se afastaram, delas se vendo apenas o fio mais alvo de um movimento circular que é como um desenho feito sem lousa ou giz por gesto demorado.
Logo quando cheguei à cidade não sabia como me aproximar, um canto de sereia soando distante convidava a andar sempre mais um pouco, ainda que estivesse com sede ou fome.
Parava apenas diante da cerca de arame velho, as canelas lanhadas porque a vegetação arbustiva é dessas com folhas serrilhadas e espinhos que se soltam para furar os pés, uma concertina natural que afasta os invasores.
As hélices criam suas próprias defesas para quando estiverem vulneráveis, doentes ou mergulhadas em sono profundo, como às vezes acontece no meio da noite, um descanso sem hora nem lugar.
Ficam paradas, distantes umas das outras, mas sempre vigiadas, amparadas por essa força que as conecta. Uma energia que vem do chão e do ar, da água e do vento.
De repente, as pás se põem a girar, sensíveis a qualquer aproximação, emitindo um sinal mudo de que o perímetro se rompeu, numa comunicação cujas vozes se pode apenas intuir, jamais escutar.
Ninguém as ouve falar, mas estão ali, em conversa própria, como esses animais de códigos alheios.
Sobre o que falam as hélices em órbita visceral?
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