Pular para o conteúdo principal

Da ponte se vê a cidade

 

Deixo de lado essas metáforas até cafonas sobre a ponte como elemento arquitetônico que conduz de um lugar a outro, estabelecendo nexos entre regiões separadas de um mesmo território geográfico e político, ligando porções de terra de repente abreviadas por um abismo físico.

Me concentro na ponte como essa plataforma de contemplação e laboratório visual de uma cidade cuja história se deu de costas para o mar, enquanto seus canhões, instalados na entrada do forte que a resguardava, apontavam para os de casa.

Os poderosos sempre desconfiados de que o risco maior estava representado no âmbito doméstico, e não em quem chegava para pilhar, como ainda fazem hoje no mesmo litoral da capitania, numa recolonização do espaço movida a energia eólica e a resorts de luxo. Nessa história, o nativo assusta mais que o forasteiro.

A vista da ponte está vendada sabe-se Deus há quanto tempo, eu mesmo não lembro quando estive pela última vez pisando as tábuas em falso do lugar, que se mantém de pé a muito custo, mais por teimosia do que por zelo diligente.

O cartão-postal agora disputado na arena pública a golpes de retórica, voluntarismo e falsos mea-culpas, distribuídos ao gosto de qualquer conversa. Frases espirituosas ou blagues fora de hora decorando o vazio de planejamento desde muito, fruto dos desencontros, mas também dos encontros por obra da conveniência.

Afinal, a ponte está parada, é isso que importa. Sem dono, como de resto tudo ali em volta, num processo avançado de deterioração ferruginosa cuja síntese é o Mara Hope, comido pelo sal e pela desmemória.

O velho barco naufragado oxidando-se lenta e progressivamente é de longe o nosso carro-alegórico, o lema de um certo olhar para o espaço urbano e seus mobiliários, seus esqueletos e sua carne, a matéria que se gasta à mercê de um movimento que vive do intercâmbio entre rasura e novidade.

O principal item do patrimônio do Ceará – o nosso Bode-Ioiô aquático – é uma obra que desaparece aos bocados, as partes imprestáveis carregadas e para sempre perdidas, todo o valor extraviado no seu estado falimentar.

A ponte, que parece isolada nessa desertificação cultural, é, na verdade, signo de uma continuidade, do tempo congelado e da desimportância com que se leva o que tinha de se inscrever na ordem do que é prioritário, e não da mera querela a animar arengas eleitorais.

Hoje, porém, está reduzida à tópica de um embate fulanizado que jamais se pergunta sobre como se chegou a essa barafunda em torno do registro e do arquivo (museus fechados, por exemplo), da memória e do esquecimento que são a marca d’água do estado geral das coisas locais.

É símbolo do desleixo, desse dar de ombros que foi se configurando como atitude mental e política inclusive no circuito artístico da cidade, parte do qual abrigada à sombra das castanholas palacianas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas