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Da ponte se vê a cidade

  Deixo de lado essas metáforas até cafonas sobre a ponte como elemento arquitetônico que conduz de um lugar a outro, estabelecendo nexos entre regiões separadas de um mesmo território geográfico e político, ligando porções de terra de repente abreviadas por um abismo físico. Me concentro na ponte como essa plataforma de contemplação e laboratório visual de uma cidade cuja história se deu de costas para o mar, enquanto seus canhões, instalados na entrada do forte que a resguardava, apontavam para os de casa. Os poderosos sempre desconfiados de que o risco maior estava representado no âmbito doméstico, e não em quem chegava para pilhar, como ainda fazem hoje no mesmo litoral da capitania, numa recolonização do espaço movida a energia eólica e a resorts de luxo. Nessa história, o nativo assusta mais que o forasteiro. A vista da ponte está vendada sabe-se Deus há quanto tempo, eu mesmo não lembro quando estive pela última vez pisando as tábuas em falso do lugar, que se mantém de pé a ...

Monstros do ar

  Talvez fosse o caso de descrever a paisagem, falar com calma sobre as pedras, os coqueiros, o movimento hipnótico das hélices girando ao longe, guardiãs de algum segredo escondido por trás das dunas. Como grandes monstros, titãs de prontidão, as pás mecânicas de um ventilador como asas de uma criatura cujo corpo se enterra sob a brancura da areia. Vislumbro as hélices e penso em caminhar até elas, mas é tarde ou cedo ainda, não sei. O sol esquenta as costas, o mato crescido arranha as pernas, vejo uma cerca e me aproximo, mas desisto de continuar. Agora que estou mais perto, ouço o vento cortado, um sulco no ar aberto com essa força fantasmática. Cataventos monstruosos, desses de sonhos intranquilos. Como as hélices chegaram até ali, quem as colocou, o que fazem quando para de ventar? Quem as plantou, de que semente vieram? Parecem ter vida própria, prestes a sair andando num passo longo com o qual me alcançariam ainda que eu corresse em direção à água e mergulhasse de cabeça no ...

Areia nos bolsos

  Demoro a voltar, estou longe ainda, no corpo um ritmo de férias que se instalou e do qual custo a sair, uma incapacidade para qualquer coisa que não seja estar à solta, sem as balizas das horas regradas de todo o tempo. As horas da semana, dos dias, do calendário. Horas impróprias, maçantes, de uso comum, feitas para funcionar. Decido então que escrever assim talvez me faça reemergir aos poucos, reavendo certo domínio do gesto físico de encadeamento, gesto cumprido mais facilmente quando no correr dos meses de janeiro a junho, antes dessa parada que faço agora em julho. Na retomada se escancara a dimensão não natural de tudo isso, o caráter forçado mediante o qual tenho de me valer do exercício diário para que esteja de prontidão, como um goleiro cujo olhar não desgruda da linha do campo, a tensão sempre em riste. Volto aos bocados, esvaziando sem pressa os bolsos da areia que trouxe de longe, depois misturada às roupas que reviram na máquina. Areia caída pelos cômodos da casa, v...

Viagem ao fundo do mar

Parece roteiro de uma série nova. Nela, super-ricos embarcam num submarino exclusivo para vistoriar as ruínas de outro portento da engenhosidade humana, o Titanic, afundado há mais de século e agora tornado peça de uma excursão para a qual é necessário investimento prévio na casa dos milhões. Certos de que alargam as fronteiras da ciência e desafiam os limites da humanidade, os bilionários – um punhado de quatro ou cinco, não lembro – se acomodam no espaço diminuto dessa sonda ultramarina, um construto naval hipertecnológico cuja aura de onipotência deve ombrear com a do finado navio ao qual se dirigiam naquele momento e do qual resta uma ossada ferruginosa. Eis, então, que o submarino desaparece misteriosamente. Importante dizer que o fato de que ele eventualmente seja encontrado hoje ainda ou amanhã não modifica o roteiro da história, que consiste, grosso modo, em mais uma dessas produções cinematográficas fabricadas tendo por ambiência e protagonistas o febril universo do luxo e seu...

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por ...

O nome da comida

Ninguém mais chama a comida de comida, apenas de proteína e carboidrato, reduzindo o alimento a sua funcionalidade como parte de um estratagema cuja finalidade é manter o edifício-corpo de pé. Desse modo, saem o arroz e a carne, o feijão e o macarrão, a farofa de cuscuz e o vinagrete, que dão lugar a uma modernosa terminologia de viés mais técnico, em um uso que escancara a leitura do ato de comer como uma operação mecânica cumprida por autômatos. Não se come mais, mas se abastece, num gesto compensatório de reposição de perdas, tal como um veículo – popular ou não – empregado no dia a dia para tarefas várias, peças do circuito automotivo que o humano incorpora como engrenagens de si. Daí que não se estranhe tanto a similaridade entre a inteligência artificial e o sapiens. Não é que as novas maquinarias tenham apenas se tornado mais capazes, é que nós também cedemos terreno voluntariamente, assumindo de bom grado o elemento postiço como parte de nós mesmos. O bicho humano, a bem da v...

Modos cearenses no restaurante

  Me pergunto se há uma razão especial para que o restaurante tenha entre nós se convertido nessa arena de resolução violenta de impasses nas classes média e alta, como casos mais recentes podem comprovar. Dito de outro modo: por que os humores do nativo afloram à mesa, onde se bebe o vinho e se debulha a boa conversa, onde figurões ou aspirantes se refestelam, todos mais ou menos irmanados nesse sentimento de que habitam uma extensão da própria casa? Era uma dúvida que passei a cultivar logo depois das cenas de um barraco dias atrás e dos escabrosos relatos em torno de outra confusão, esta de proporções pantagruélicas e cujos personagens talvez seja até desnecessário mencionar, visto que isso tudo já é sabido por todos desde os primeiros minutos do ocorrido, o que mais uma vez consagra a vocação da terrinha para a fofoca. Esses dois episódios, um de recorte popular e outro mais bem situado na hierarquia dos bens locais, mostram que, em termos de métrica civilizacional, endinheir...