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Museu da selfie


Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica.

“Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema.

Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém.

Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por aí vai, estando aberto esse horizonte contra o qual se projeta o alcance da visada museológica.

Mas como se constitui um museu a partir de formato tão volátil quanto a selfie? Como se armazena um repertório de selfies, autorretratos digitais cuja marca é justamente a impermanência inscrita no território da nuvem e sua condição desencarnada?

Como ainda tinha tempo livre, levei uns minutos matutando sobre todo esse rito que cerca a projeção do foco de uma câmera sobre si mesmo, na intenção de se flagrar desatento (a) e eventualmente bonito (a).

Desde o ambiente da loja, passando pelos móveis coloridos e as bolinhas de plástico, até a luminosidade quente e a onipresença das asas desenhadas na parede, a selfie convida a uma presentificação do fugidio.

Tudo no museu da selfie consagraria a novidade, mas uma novidade que se pretende “antiguizante” – não sei se a palavra existe, mas me refiro a essa tentativa desesperada de tornar antigo o que é novo, de filtros de edição a imagens pessoais que soam como capas de discos dos anos de 1980.

O que se busca numa selfie, desse modo, é menos uma operação de registro ou documentação, como se fazia muito tempo atrás com as fotos de família ou de aniversário. Nela, impera mais certo desejo de jogar com a lógica da matriz e da cópia, dissimulando o artifício com signos de transcendência de fácil assimilação: asas coloridas, frases edificantes e outros símbolos que inspiram leveza cromática, sem lugar para meios tons ou zonas cinzentas.

Uma luz domesticada voltada ao próprio rosto, dirigida de si para si, sem interferências de terceiros ou mediações, com o objetivo de manufaturar autenticidade. A autoimagem na era da reprodutibilidade técnica. 

Se em todo museu há um subtexto no qual se lê o seu propósito, no das selfies se escancara a busca por essa existência aurática que extrapole o imediato, alçando o portador a um outro patamar mediante o consumo de uma epifania sob demanda.

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