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O nome da comida



Ninguém mais chama a comida de comida, apenas de proteína e carboidrato, reduzindo o alimento a sua funcionalidade como parte de um estratagema cuja finalidade é manter o edifício-corpo de pé.

Desse modo, saem o arroz e a carne, o feijão e o macarrão, a farofa de cuscuz e o vinagrete, que dão lugar a uma modernosa terminologia de viés mais técnico, em um uso que escancara a leitura do ato de comer como uma operação mecânica cumprida por autômatos.

Não se come mais, mas se abastece, num gesto compensatório de reposição de perdas, tal como um veículo – popular ou não – empregado no dia a dia para tarefas várias, peças do circuito automotivo que o humano incorpora como engrenagens de si.

Daí que não se estranhe tanto a similaridade entre a inteligência artificial e o sapiens. Não é que as novas maquinarias tenham apenas se tornado mais capazes, é que nós também cedemos terreno voluntariamente, assumindo de bom grado o elemento postiço como parte de nós mesmos.

O bicho humano, a bem da verdade, sempre foi resultado do artifício, como a história costuma provar facilmente. As ferramentas inventadas, afinal, ajudaram a melhorar habilidades consideradas como orgânicas, a exemplo de utensílios fabricados precariamente e depois usados para construção, para a escrita e por aí vai.

Até então, porém, tratava-se de aperfeiçoar competências, nunca de substituí-las totalmente, como era o caso do papel e da imprensa, que amplificaram a capacidade de armazenamento, mas não neutralizaram a memorização.

O que se dá neste momento, no entanto, tem a ver com outro grau de mudança, mais profunda e algo incontrolável, porque envolve uma variável fora do horizonte comum e talvez ainda pouco compreendida: a infinita potência das IAs, que carregam consigo não somente uma caixa de Pandora, mas todo um léxico particular – uma língua neural que pode moldar o que somos.

É como se, desde já, passássemos a copiar não uns aos outros, no intercâmbio das melhores ideias, mas a máquina que organiza o mundo e do qual ele depende, inclusive o da linguagem, cuja razão de existir sempre se baseou na improvisação.

A comida funcional, sob esse ponto de vista, é apenas um indício de algo por vir, mas um indício significativo nessa mutação que é a maquinização em andamento, ou seja, o orgânico refletido à imagem e semelhança do artificial. Não a humanização da máquina, mas a desumanização do humano.

Esqueçam a arquitetura do Homem Vitruviano ou qualquer outra epistemologia menos antropocêntrica que pretenda sucedê-la. O que se coloca como métrica, e nisso a linguagem é termômetro perfeito, é a aceitação tácita do modelo computacional como escala de ações e emoções.

O certo, nessa perspectiva funcionalista, é reduzir cada objeto ou ser vivo a um punhado de atributos cuja relevância se estabelece em relação ao sistema como um todo, deixando de lado a riqueza do particular, com suas arestas e eventuais defeitos. 

O que é o avanço nos procedimentos de harmonização senão o ajustamento do orgânico a padrões fixados por um filtro instituído pelo olho maquínico? 

É dessa maneira desencantada que chegamos a um restaurante qualquer e pedimos uma boa proteína, com acompanhamento nutricional regulado e de preferência proporcionalmente calculado, sem mais nem menos, exatamente como talvez fizesse o ChatGPT num dia muito extenuante após horas e horas de processamento algorítmico incansável.

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