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Modos cearenses no restaurante

  Me pergunto se há uma razão especial para que o restaurante tenha entre nós se convertido nessa arena de resolução violenta de impasses nas classes média e alta, como casos mais recentes podem comprovar. Dito de outro modo: por que os humores do nativo afloram à mesa, onde se bebe o vinho e se debulha a boa conversa, onde figurões ou aspirantes se refestelam, todos mais ou menos irmanados nesse sentimento de que habitam uma extensão da própria casa? Era uma dúvida que passei a cultivar logo depois das cenas de um barraco dias atrás e dos escabrosos relatos em torno de outra confusão, esta de proporções pantagruélicas e cujos personagens talvez seja até desnecessário mencionar, visto que isso tudo já é sabido por todos desde os primeiros minutos do ocorrido, o que mais uma vez consagra a vocação da terrinha para a fofoca. Esses dois episódios, um de recorte popular e outro mais bem situado na hierarquia dos bens locais, mostram que, em termos de métrica civilizacional, endinheir...

O Brasil, a capivara e o Google

Não há qualquer notícia no mundo sobre país, além do Brasil, cuja população esteja simultaneamente polarizada em torno de querelas envolvendo uma capivara e a regulação das redes sociais, ou seja, entre uma questão ambiental e outra tecnológica, uma amazônica e outra virtual. Embora pareçam distantes, no entanto, os problemas se tocam, eu diria que até se confundem. Afinal, existe um lado para o qual o arcabouço legal há de se dobrar sempre ante o voluntarismo, de modo que não interessa se se trata de animal silvestre, tampouco o que estabelece a lei. Nos dois casos, o da capivara e o do Google, essa cosmovisão alucinada se encontra na posição de quem supõe que o liberalismo sem amarras nem freios é a melhor forma de organização social, não por acaso projetando a sombra permanente de uma ameaça censória que nunca se cumpre, ambas representadas pelo Estado – num exemplo, o Ibama; noutro, o Ministério da Justiça, encarnando o espantalho do autoritarismo. Os paladinos desse regime narcísi...

Uma rara fineza

  Leio o discurso de Chico Buarque ao receber o Camões e tenho a impressão de que se trata menos de um discurso e mais de um testemunho sem tempo, ancorado no Brasil, mas não apenas este de agora ou de hoje. Um desabafo sem rebuscamento nem jogos adensados, salpicado de uma galhardia muito ao feitio do compositor e escritor. É uma fala que costura descendências: “o meu pai era paulista, meu avô pernambucano”, em linha entre passado e futuro. E assim retroagindo ao imenso Portugal, dando-se conta na caravana transatlântica de que os ramos negro e indígena foram se apagando nessa transmissão filial, numa operação deliberada de branqueamento da qual a violenta constituição do país é tributária. Em terras lusitanas, um Chico meio malandro, meio poeta, pilheriando sobre gravatas e assim deslocando a pauta pela graça da linguagem, refaz os acidentes políticos, as ladeiras e abismos pelos quais a nação rolou abaixo desde 2018. Entre mesuras, o autor recebe a homenagem em nome dos artistas...

O que fazer com a obra de Boaventura?

  Perguntar-se sobre o que fazer com os livros do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, acusado de assédio sexual por ex-alunas, já significa estabelecer uma clivagem entre autor e obra, em relação aos quais se poderia proceder a uma separação. Mas é possível mesmo isolar a moral da obra da de quem a assina? Ou escritor e escrito estariam mutuamente implicados não apenas no gesto de produção criativa, como também no resultado final do trabalho? Em outras palavras, quanto das condições materiais e éticas de sua criação uma obra de arte carrega e quanto dos valores do seu criador ela expressa? Professor catedrático da Universidade de Coimbra, Boaventura é notório estudioso do tema da descolonialidade, dentro do qual se firmou como uma espécie de “senhor feudal” em torno de quem se organizou uma “vassalagem” – agora sabe-se a que custo e recorrendo a que expedientes. A influência do pesquisador – o “star professor” no artigo-denúncia de duas mulheres publicado em março – se ...

A catraca, a faixa e a cidade

Penso no que pode haver de comum entre uma catraca de ônibus, uma faixa de pedestres e uma cidade quase aniversariante, mas não qualquer catraca, não qualquer faixa nem qualquer cidade. Uma catraca duplicada, com pavimento superior e feitio de puxadinho, de modo que não se possa atravessá-la com mochila às costas, por exemplo, tampouco carregando-se sacolas de compras ou uma criança de braço. Uma catraca a serviço do suplício, como se vê, inventada certamente por quem tenha estudado esses instrumentos medievais dos quais os carrascos se serviam nas suas lidas de infligir dor e desespero aos citadinos daquela época. Exagero? Então tome-se de coragem e apanhe um ônibus na porta de casa, desassombrado (a) leitor (a), embarcando nessa nau desconfortável e quente, ao preço de módicos R$ 4,50, para uma volta pela urbe prestes a soprar velinhas. A catraca-duplex, porém, é dispositivo todo nosso. Tecnologia de controle made in Fortaleza: incongruente e exclusivista. Uma gambiarra que cont...

Cidades invisíveis

Hoje é dia de feira de ciências, penso enquanto levas de meninos e meninas desfilam pela quadra da escola tentando equilibrar maquetes de papelão que reproduzem em versão diminuta a ideia de cidade que cultivam em casa. Retornam para a sala de aula depois de uma semana às voltas com a tarefa de reconstruir um microuniverso fabricado com recipientes de creme dental, latas, algumas vasilhas e outros materiais de uso comum no dia a dia. Nada deve ultrapassar o tamanho médio de uma bandeja, com 20 centímetros de largura por 40 cm de comprimento. Desafiadas a imaginar a vida numa métrica infinitamente menor, refazem os pontos cardeais de um itinerário afetivo e esboçam os limites de um cotidiano cujo horizonte ainda não aprenderam a enxergar por inteiro. Alguns signos se repetem. Em quase todas, por exemplo, há pelo menos uma farmácia, à exceção de uma mais caprichada e até realista, que tem duas, além de um McDonald's todo pintado de vermelho, em contraste com as paredes caiadas de br...

O falso casaco do papa

  Escrevo num pedaço de papel “o casaco falso do papa”, mas logo me dou conta da impropriedade da frase, visto que não se trata de peça inautêntica de vestuário, como se poderia supor olhando a imagem que correu o mundo. Nela, a maior autoridade da Igreja Católica desfila por alguma viela de Roma, não por acaso a eterna capital da moda. O rosto está erguido e os lábios entreabertos, no olhar a autoconfiança de um Drake um dia antes de cancelar a sua participação num festival de música em um país qualquer do cone Sul. Reescrevo a sentença na intenção de corrigi-la: “o falso casaco do papa”. Inverto as posições entre os vocábulos, mas a dúvida persiste. Afinal, deslocar o adjetivo não resolveria o problema, pelo contrário, a natureza marginal do agasalho estaria acentuada, levando-se a crer que o sumo-pontífice teria adquirido o item numa lojinha do centro da cidade, sem nota fiscal que atestasse a santidade daquela transação, tampouco sua legalidade. Me pergunto se comprar mercadori...