Leio o discurso de Chico Buarque ao receber o Camões e tenho a impressão de que se trata menos de um discurso e mais de um testemunho sem tempo, ancorado no Brasil, mas não apenas este de agora ou de hoje. Um desabafo sem rebuscamento nem jogos adensados, salpicado de uma galhardia muito ao feitio do compositor e escritor.
É uma fala que costura descendências: “o meu pai era paulista, meu avô pernambucano”, em linha entre passado e futuro. E assim retroagindo ao imenso Portugal, dando-se conta na caravana transatlântica de que os ramos negro e indígena foram se apagando nessa transmissão filial, numa operação deliberada de branqueamento da qual a violenta constituição do país é tributária.
Em terras lusitanas, um Chico meio malandro, meio poeta, pilheriando sobre gravatas e assim deslocando a pauta pela graça da linguagem, refaz os acidentes políticos, as ladeiras e abismos pelos quais a nação rolou abaixo desde 2018.
Entre mesuras, o autor recebe a homenagem em nome dos artistas, humilhados e ofendidos nesses quatro anos, sempre os alvos prioritários de qualquer populista assanhado. De passagem, brinca ao cogitar que o tenham esquecido e a honraria, expirado, perdida para sempre em alguma gaveta da história, extraviada por decisão de uma qualquer autoridade.
Produzir esquecimento, esse foi precisamente o motor do governo de Jair Bolsonaro, que pôs a funcionar a maquiaria de reescrita do passado, numa grafia cuja função não era o registro, mas a rasura e o apagamento físico e simbólico.
Não citado nominalmente, a pretexto de não se sujar (citá-lo seria dar-lhe sobrevida), o ex-mandatário participou da cerimônia como espectro, aludido por Chico naquele seu trato que combina discreta zombaria e elegância, exercício próprio de quem se acha à vontade no território da língua portuguesa.
Um Chico brasileiro, a quem ele por si julga mais cantor popular que escritor, sobretudo em contraste com um Saramago ou um João Cabral, ambos ganhadores da mesma premiação e de cuja obra se pode dizer sem exagero que se fundava unicamente na palavra escrita, sem se derramar para outros suportes, a exemplo da canção.
Já perto do fim, numa intertextualidade jocosa, o “gajo” se refere à “rara fineza do ex-presidente” por ter se desincumbido de lhe outorgar o Camões, livrando-o de portar, no diploma, a sua assinatura, que estaria agora inscrita enquanto durasse o papel, a marca para sempre carregada como gesto.
E, para deixar à mostra o alívio e a graça de não vê-lo materializado em algo que lhe dissesse respeito, o artista/autor recorre à própria obra poética em procura de tradução: “Você que inventou a tristeza/ ora, tenha a fineza/ de desinventar”.
Por um segundo, naquele palco além-mar, é como se Chico desinventasse o Brasil que pretendeu golpear as instituições – e de fato golpeou, no marco vergonhoso de 8 de janeiro, episódio para o qual convergiu a operação de captura da história – essa mesma história na qual, em livros e poemas-canções, Chico expõe nossas feridas.
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