Escrevo num pedaço de papel “o casaco falso do papa”, mas logo me dou conta da impropriedade da frase, visto que não se trata de peça inautêntica de vestuário, como se poderia supor olhando a imagem que correu o mundo.
Nela, a maior autoridade da Igreja Católica desfila por alguma viela de Roma, não por acaso a eterna capital da moda. O rosto está erguido e os lábios entreabertos, no olhar a autoconfiança de um Drake um dia antes de cancelar a sua participação num festival de música em um país qualquer do cone Sul.
Reescrevo a sentença na intenção de corrigi-la: “o falso casaco do papa”. Inverto as posições entre os vocábulos, mas a dúvida persiste. Afinal, deslocar o adjetivo não resolveria o problema, pelo contrário, a natureza marginal do agasalho estaria acentuada, levando-se a crer que o sumo-pontífice teria adquirido o item numa lojinha do centro da cidade, sem nota fiscal que atestasse a santidade daquela transação, tampouco sua legalidade.
Me pergunto se comprar mercadoria falsificada é pecado, mas a incerteza extrapola o tema principal da minha redação, que é o sobressalto produzido pela falta de legibilidade dessa fotomontagem.
Um papa jamais se vestiria assim, se comportaria assim, teria uma expressão assim. E, no entanto, ei-lo, crível e pio, numa desconcertante musculatura inflável, pronto a debelar hordas de mouros imaginários a investir contra a moralidade ocidental.
Como, então, traduzir esse artefato visual em termos de vida digital, guerra política, ataques ao Congresso e a escolas, derivas do real e outras discussões mais ou menos interessantes e urgentes sobre como o concreto tem perdido ancoragem num dia a dia substituído por interações entre zeros e uns?
Tento mais uma vez: “a falsa imagem do falso papa usando um casaco, também falso”, mas o triplo falsário resulta, como se sabe, num positivo, de maneira que a imprecisão continua.
Até que acerto: “a falsa imagem do papa de casaco”, agora finalmente convencido de que havia me aproximado da questão, que é o caráter postiço daquela fotografia que um grande jornal tinha acabado de estampar na manchete do seu portal tão logo se espalhara.
Toda a cadeia de sofisticada adulteração plasmada num “fake” Francisco tinha furado a cidadela do bom jornalismo, transpassando as muralhas defensivas do ofício para se instalar no coração da boa notícia. Mas quem era o responsável por esse golpe desmoralizante?
“Uma inteligência artificial”, pensei em tom de brincadeira, rejeitando em seguida essa casmurrice que tenho adotado diante das tecnologias e das renovadas promessas de ganhos existenciais em seu uso irrestrito no cotidiano, tal como um dia nos disseram que era precisamente o que a internet representava.
Naquela época, no final dos anos de 1990, ninguém ainda falava nada sobre o agenciamento do ódio, o sequestro algorítmico, o esvaziamento da arena pública e o desmantelo dos mecanismos sociais de mediação, ou seja, tudo aquilo que permite que um garoto de 13 anos se radicalize debaixo do nariz do sistema de ensino, da família, das autoridades e dos amigos, antes de entrar na sala de aula e matar sua professora a facadas.
A falsa foto do papa e o atentado em São Paulo apontam para uma mesma moldura de banalidade (é apenas uma funcionalidade tecnológica; é só um garoto que sofreu bullying) cujo conteúdo esconde, porém, uma indistinção entre noções como liberdade e intolerância, realidade e invenção.
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