Perguntar-se sobre o que fazer com os livros do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, acusado de assédio sexual por ex-alunas, já significa estabelecer uma clivagem entre autor e obra, em relação aos quais se poderia proceder a uma separação.
Mas é possível mesmo isolar a moral da obra da de quem a assina? Ou escritor e escrito estariam mutuamente implicados não apenas no gesto de produção criativa, como também no resultado final do trabalho?
Em outras palavras, quanto das condições materiais e éticas de sua criação uma obra de arte carrega e quanto dos valores do seu criador ela expressa?
Professor catedrático da Universidade de Coimbra, Boaventura é notório estudioso do tema da descolonialidade, dentro do qual se firmou como uma espécie de “senhor feudal” em torno de quem se organizou uma “vassalagem” – agora sabe-se a que custo e recorrendo a que expedientes.
A influência do pesquisador – o “star professor” no artigo-denúncia de duas mulheres publicado em março – se constituiu, ao que parece, também mediante condutas sexual e profissionalmente predatórias, das quais se beneficiou e cuja repetição teria sido tolerada no ambiente do Centro de Estudos Sociais, sob seu comando até dias atrás, quando os casos vieram à tona.
Nesse espaço de hierarquias decantadas e disputas balizadas por um jogo cujas regras são uma ciência à parte, o segredo de polichinelo dos abusos foi mantido por anos não apenas por pudor ou receio de exposição, mas porque o campo institucional acadêmico opera a favor de abusadores/exploradores.
E isso também é lugar-comum nos departamentos das universidades (de Sociologia e de outras disciplinas das humanas e das exatas), de onde não partiu uma única nota de repúdio sequer em relação ao tema, por enquanto – talvez porque nesses colegiados predominem homens, embora as mulheres sejam a maioria entre pós-graduandos.
Logo, o processo de construção de uma trajetória intelectual (livros, artigos, palestras, orientações) como a de Boaventura não se dá à revelia desse sistema, mas como parte dele. Nesse microcosmo, obra e autor estão sempre dissociados, num mecanismo que funciona como portas corta-fogo em episódios mais rumorosos, de maneira a evitar prejuízos que contaminem carreiras estreladas.
Ele é brilhante, mas é terrível, chegou a narrar uma das alunas do sociólogo, no próprio relato o reconhecimento de atributos superlativos do mestre, para cujos pecados quem sabe os colegas fizessem vista grossa, calculando potenciais danos se se envolvessem numa questão como essa.
É insustentável, porém, manter a cisão entre homem e obra, sobretudo quando os malfeitos que lhe são atribuídos, se provados, desautorizam Boaventura exatamente no próprio território onde pavimentou sua bibliografia espetacular: a investigação de subalternidades e das relações de dependência e dominação.
Conservar esse recorte beneficia apenas os abusadores (fascistas, pedófilos, nazistas, racistas etc.), cujas qualidades estéticas ou de qualquer outra ordem apareceriam como índice de virtude. Uma virtude corrompida, digamos assim, mas ainda assim uma virtude, que a obra concede ao homem e da qual ele extrai proteção social.
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