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O falso casaco do papa

  Escrevo num pedaço de papel “o casaco falso do papa”, mas logo me dou conta da impropriedade da frase, visto que não se trata de peça inautêntica de vestuário, como se poderia supor olhando a imagem que correu o mundo. Nela, a maior autoridade da Igreja Católica desfila por alguma viela de Roma, não por acaso a eterna capital da moda. O rosto está erguido e os lábios entreabertos, no olhar a autoconfiança de um Drake um dia antes de cancelar a sua participação num festival de música em um país qualquer do cone Sul. Reescrevo a sentença na intenção de corrigi-la: “o falso casaco do papa”. Inverto as posições entre os vocábulos, mas a dúvida persiste. Afinal, deslocar o adjetivo não resolveria o problema, pelo contrário, a natureza marginal do agasalho estaria acentuada, levando-se a crer que o sumo-pontífice teria adquirido o item numa lojinha do centro da cidade, sem nota fiscal que atestasse a santidade daquela transação, tampouco sua legalidade. Me pergunto se comprar mercadori...

Desinfluencer

Talvez já tenha passado da hora de começarmos todos a desinfluenciar, ou seja, a exercer uma influência com sinal invertido ou nenhum, destinada a encorajar uma potencial audiência a que deixe de fazer o que supúnhamos que devesse, e passe a fazer o que lhe der na telha. Parece complicado, mas é simples. A um “desinfluencer” de destaque, com milhões de seguidores e selo de verificação, caberia, entre tantas possibilidades de atuação, desestimular o consumo excessivo ou a adoção dos algoritmos como métrica de vida, fazendo minguar, se preciso for, sua própria base de fãs. Das técnicas de embelezamento às dicas de treino, das sugestões de cardápio às listas de livros, nada escaparia da potência silenciosa e desanimada desse Zuckerberg no multiverso, cujo principal atributo seria o poder de convencimento de que não há nada nem ninguém que se possa convencer. Onde houver ligeireza, pregaria o evangelho do desinfluencer, que eu leve a vagarosidade. Onde houver LED, que eu leve o “chiaroscu...

Nada em nenhum lugar

  Admito de partida que não vi o filme do Oscar até o final, não pude vê-lo, não consegui, fui incapaz. É como se me faltasse um atributo, meu sistema operacional subitamente aquém das tecnologias avançadas pelo longa-metragem que foi o grande vencedor da festa da indústria cinematográfica estadunidense. De repente, não me sentia dotado do background exigido para desbloquear as funcionalidades que a obra prometia ao final do arco-íris da experiência pela qual eu havia pago e da qual naturalmente queria um retorno. E isso, claro, me pareceu significativo, o fato de que eu não tenha conseguido terminar, que tenha desistido ou adiado até agora a retomada do consumo; de que, mesmo neste momento, solte mais uma vez a reprodução na TV da sala, apenas para suspendê-la minutos depois, vencido novamente pela minha obsolescência individual. Então me pus a perguntar por quê. Por que eu encontrava uma dificuldade incontornável e ainda não compreensível de participar daquele espetáculo audiovis...

Patologia e astrologia (2)

  Hoje em dia tudo está patologizado ou astrologizado, ou seja, nada escapa a um ou outro filtro, que funcionam como mecanismos complementares. Mas o que quer dizer exatamente isso? Que a patologização é o procedimento por meio do qual a conduta social é reduzida à doença ou explicada integral ou parcialmente por ela, de modo que o arbítrio do indivíduo se dilua ao ponto de restar somente esse vetor orgânico ou biológico que incide sobre as decisões pessoais. Não é que fulano ou beltrana sejam assim, mas a doença os faz assim. Há um enquadramento patológico recorrente e sintomático diante do qual é preciso compreender o que fizeram. A doença os explica, os justifica e, sob certo ângulo, os redime. Cada vez mais o rol de patologias se imiscui nas relações cotidianas, ampliando-se e abarcando um sem número de situações, das quais mantenho prudentemente distância, evitando nomeá-las para não parecer que aponto o dedo para ninguém, inclusive para mim. A patologização é subproduto de v...

Trapaça

  Meu avô era o que se chamava de trapaceiro, jogava com cartas marcadas cuja sintaxe apenas ele conhecia. Eram marcas muito sutis, meu tio não soube explicar, mas dizia que ele fazia microincisões no baralho, nas pontas das cartas, intervenções de pouca legibilidade, uma espécie de ourivesaria da malandragem, de modo que apenas ele e mais ninguém conseguiria identificar o naipe e a numeração. Ganhou algum dinheiro à sua maneira, viajando e jogando apostado, até que um dia morreu numa briga.  Morreu na rua, escorado num muro, segurando a barriga depois de levar um tiro. Outras famílias têm marcos afetivos na cidade onde vivem. Ali foi nosso primeiro encontro, acolá foi a primeira comunhão da sua irmã etc. A minha, contudo, era mais extravagante. Quando passávamos de carro a caminho da casa da minha mãe, meu pai apontava a esquina e dizia “seu avô morreu bem naquele canto”, indicando o local onde hoje funciona uma loja de autopeças, e acho mesmo que ninguém empregado nesse comé...

A praia ideal

Pensei bastante na distopia de uma praia sem sol, sem jangadeiro, sem peixes, iluminada unicamente por lâmpadas de LED e acondicionada por refrigeradores de ar, pavimentada com piso de porcelanato e orientada por corrimãos e passarelas que levam diretamente ao estacionamento do superprédio onde vivem os supermoradores de uma supercidade feita para poucos. Nas salas espaçadas e agradabilíssimas dessas fortalezas pós-pandêmicas, superfamílias esperam uma superpizza que chegará em curtíssimo tempo levada por um empregado cujo salário não paga certamente o IPVA de um único pneu do supercarro desse superconsumidor. Uma praia cujas areias recenderiam a aroma de shopping center, aquele adocicado do azulejo de essência facilmente identificável e que se aspira a léguas de distância, um cheiro inconfundível que encapsula todo um projeto de vida e assegura o conforto de que, ali, finalmente, se está a salvo e em paz como no átrio de uma igreja medieval isolada da peste. Uma praia sofisticadamente...

O fim da Cultura e a cultura como fim

  As reações ao fim da Livraria Cultura variaram entre o tom lamentoso e explicitamente afetivo e um contragolpe que acusava visão mais desencantada, cujo horizonte chamava a enxergar na empresa de livros não um santuário, mas um matadouro dos pequenos negócios. É possível que a Cultura tenha sido, ao mesmo tempo, esse céu e esse inferno? Que tenha abrigado as memórias de tanta gente, enquanto colonizava o mercado e se reproduzia de maneira fúngica, condenando casas do ramo como um vírus que se abate sobre um organismo saudável? Livrarias, mesmo as mais acanhadas e escondidas, são sempre lugares na entrada dos quais suspendemos certo modo pragmático de vida, colado ao dia a dia. Nelas andamos a ver se as horas se preenchem de outra maneira, como se à procura de algo que seja pergunta e resposta, que tenha uma chave para questões mal formuladas que carregamos todos. É, nesse sentido, espaço muito assemelhado com igrejas, onde a devoção se expõe – não a uma transcendência divina, mas...