As reações ao fim da Livraria Cultura variaram entre o tom lamentoso e explicitamente afetivo e um contragolpe que acusava visão mais desencantada, cujo horizonte chamava a enxergar na empresa de livros não um santuário, mas um matadouro dos pequenos negócios.
É possível que a Cultura tenha sido, ao mesmo tempo, esse céu e esse inferno? Que tenha abrigado as memórias de tanta gente, enquanto colonizava o mercado e se reproduzia de maneira fúngica, condenando casas do ramo como um vírus que se abate sobre um organismo saudável?
Livrarias, mesmo as mais acanhadas e escondidas, são sempre lugares na entrada dos quais suspendemos certo modo pragmático de vida, colado ao dia a dia. Nelas andamos a ver se as horas se preenchem de outra maneira, como se à procura de algo que seja pergunta e resposta, que tenha uma chave para questões mal formuladas que carregamos todos.
É, nesse sentido, espaço muito assemelhado com igrejas, onde a devoção se expõe – não a uma transcendência divina, mas a essa matéria-prima que opera sutis metamorfoses no espírito e se dá de maneira evidentemente silenciosa, mas irrevogável.
Do mesmo modo, livrarias estão marcadas pelas pegadas que deixamos no curso dos anos, como trilhas de vida, as lombadas dedilhadas e os volumes retirados de seus cantos de origem e deixados estantes à frente ou atrás, à toa, para que outro ou outra os encontre.
A LC, com seu projeto arquitetônico que valorizava um alargamento do olhar, tanto para os lados quanto para cima (pé direito alto, escadarias em espiral, animais voadores esculpidos em madeira), era um exemplo desse amálgama em que o privado e o público se misturavam, produzindo uma memória que agora, com seu fim, se ressente.
Mas, como em tudo, há esse outro lado; a parede falsa subitamente à mostra, e o terreno da fantasia cede. Com a Cultura se viu progressivamente que se tratava de negócio mal-conduzido, principalmente nos anos recentes. Mais que isso, era predatório, perverso com seus funcionários – basta uma volta nas redes sociais para colher uma pletora de relatos de ex-empregados em cujo centro estão atos de crueldade no cotidiano da companhia.
Isto para não falar das dívidas com editoras, grandes e pequenas, prejudicadas antes e hoje e sem quaisquer perspectivas de, declarada a falência, serem ressarcidas.
À imperícia gerencial, então, somou-se uma cultura da toxicidade, retroalimentadas e resultando no que se vê agora: a debacle do símbolo de uma era de massificação do livro, do sonho de expansão da leitura e de recuo nos índices de desinteresse pela literatura, em especial.
Ao menos era assim que se costumava olhar para a Cultura, sobretudo essa classe média sudestina e sua inteligência acarpetada, como se a livraria encarnasse o ideário bandeirante de desbravar e civilizar um país inculto, expandindo-se vertiginosa e violentamente (chegou a ter dezenas de lojas, uma delas em Fortaleza, fechada tempos atrás).
Vê-la esvaziar-se aos poucos, os livros encaixotados e as portas prestes a cerrar, as queixas de usuários ouvidos como testemunhas de uma catástrofe, é um desses momentos agridoces dos quais se tenta extrair algum ensinamento.
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