Pular para o conteúdo principal

Patologia e astrologia (2)

 

Hoje em dia tudo está patologizado ou astrologizado, ou seja, nada escapa a um ou outro filtro, que funcionam como mecanismos complementares. Mas o que quer dizer exatamente isso?

Que a patologização é o procedimento por meio do qual a conduta social é reduzida à doença ou explicada integral ou parcialmente por ela, de modo que o arbítrio do indivíduo se dilua ao ponto de restar somente esse vetor orgânico ou biológico que incide sobre as decisões pessoais.

Não é que fulano ou beltrana sejam assim, mas a doença os faz assim. Há um enquadramento patológico recorrente e sintomático diante do qual é preciso compreender o que fizeram. A doença os explica, os justifica e, sob certo ângulo, os redime.

Cada vez mais o rol de patologias se imiscui nas relações cotidianas, ampliando-se e abarcando um sem número de situações, das quais mantenho prudentemente distância, evitando nomeá-las para não parecer que aponto o dedo para ninguém, inclusive para mim.

A patologização é subproduto de vidas rotinizadas e virtualizadas, aceleradas artificialmente, turbinadas por regimes “non stop” cujo propósito é induzir mais aceleração e rotinização, mais tempo queimado feito combustível fóssil para alimentar a caldeira do narcisismo.

Não por acaso, a astrologização talvez tenha de ser encarada (é uma questão que me coloco) como o outro lado da moeda do mesmo fenômeno de desresponsabilização política. Mas agora numa chave mais lúdica e popular, um modo assimilável e perfeitamente transmitido via redes – um “life style”, como se dizia antigamente.

“Astrologizar” os comportamentos, digamos, significa delegar sua compreensão para um âmbito não social, transcendental, no qual as explicações para a maneira como as pessoas fazem o que fazem e dizem o que dizem estão inerentemente ligadas a fatores extra-racionais, esotéricos, com todas as ressalvas que existem sobre o termo ra-ci-o-na-li-da-de, sobretudo a racionalidade ocidental que vem legando terra arrasada.

Assim, “patologizado” ou “astrologizado” – às vezes ambas as coisas –, esse sujeito “café com leite”, um sujeito “dessujeitado” e "zumbificado", continuamente refém de uma ideia de que a vida pode ser adquirida sob demanda a qualquer tempo e qualquer preço, se desincumbe de amarras ou obrigações, o que o livra indiretamente de se tornar alvo do crivo social.

Se tudo é patologia ou astrologia, se as ações se originam nesse corpo fisicamente debilitado que vai sendo forjado pelas tecnologias (mãos em garra, perda de campo visual, coluna recurvada etc.), que sujeito resulta da salada millennial temperada com vídeos fragmentados 24 horas por dia e sete dias por semana?

Um sujeito permanentemente distraído, incapaz de concentração, desvinculado e à deriva, à mercê de plataformas cujos cálculos algorítmicos determinam gestos dos mais complexos aos mais simples, como abrir a porta da geladeira.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...