Hoje em dia tudo está patologizado ou astrologizado, ou seja, nada escapa a um ou outro filtro, que funcionam como mecanismos complementares. Mas o que quer dizer exatamente isso?
Que a patologização é o procedimento por meio do qual a conduta social é reduzida à doença ou explicada integral ou parcialmente por ela, de modo que o arbítrio do indivíduo se dilua ao ponto de restar somente esse vetor orgânico ou biológico que incide sobre as decisões pessoais.
Não é que fulano ou beltrana sejam assim, mas a doença os faz assim. Há um enquadramento patológico recorrente e sintomático diante do qual é preciso compreender o que fizeram. A doença os explica, os justifica e, sob certo ângulo, os redime.
Cada vez mais o rol de patologias se imiscui nas relações cotidianas, ampliando-se e abarcando um sem número de situações, das quais mantenho prudentemente distância, evitando nomeá-las para não parecer que aponto o dedo para ninguém, inclusive para mim.
A patologização é subproduto de vidas rotinizadas e virtualizadas, aceleradas artificialmente, turbinadas por regimes “non stop” cujo propósito é induzir mais aceleração e rotinização, mais tempo queimado feito combustível fóssil para alimentar a caldeira do narcisismo.
Não por acaso, a astrologização talvez tenha de ser encarada (é uma questão que me coloco) como o outro lado da moeda do mesmo fenômeno de desresponsabilização política. Mas agora numa chave mais lúdica e popular, um modo assimilável e perfeitamente transmitido via redes – um “life style”, como se dizia antigamente.
“Astrologizar” os comportamentos, digamos, significa delegar sua compreensão para um âmbito não social, transcendental, no qual as explicações para a maneira como as pessoas fazem o que fazem e dizem o que dizem estão inerentemente ligadas a fatores extra-racionais, esotéricos, com todas as ressalvas que existem sobre o termo ra-ci-o-na-li-da-de, sobretudo a racionalidade ocidental que vem legando terra arrasada.
Assim, “patologizado” ou “astrologizado” – às vezes ambas as coisas –, esse sujeito “café com leite”, um sujeito “dessujeitado” e "zumbificado", continuamente refém de uma ideia de que a vida pode ser adquirida sob demanda a qualquer tempo e qualquer preço, se desincumbe de amarras ou obrigações, o que o livra indiretamente de se tornar alvo do crivo social.
Se tudo é patologia ou astrologia, se as ações se originam nesse corpo fisicamente debilitado que vai sendo forjado pelas tecnologias (mãos em garra, perda de campo visual, coluna recurvada etc.), que sujeito resulta da salada millennial temperada com vídeos fragmentados 24 horas por dia e sete dias por semana?
Um sujeito permanentemente distraído, incapaz de concentração, desvinculado e à deriva, à mercê de plataformas cujos cálculos algorítmicos determinam gestos dos mais complexos aos mais simples, como abrir a porta da geladeira.
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