Admito de partida que não vi o filme do Oscar até o final, não pude vê-lo, não consegui, fui incapaz. É como se me faltasse um atributo, meu sistema operacional subitamente aquém das tecnologias avançadas pelo longa-metragem que foi o grande vencedor da festa da indústria cinematográfica estadunidense.
De repente, não me sentia dotado do background exigido para desbloquear as funcionalidades que a obra prometia ao final do arco-íris da experiência pela qual eu havia pago e da qual naturalmente queria um retorno.
E isso, claro, me pareceu significativo, o fato de que eu não tenha conseguido terminar, que tenha desistido ou adiado até agora a retomada do consumo; de que, mesmo neste momento, solte mais uma vez a reprodução na TV da sala, apenas para suspendê-la minutos depois, vencido novamente pela minha obsolescência individual.
Então me pus a perguntar por quê. Por que eu encontrava uma dificuldade incontornável e ainda não compreensível de participar daquele espetáculo audiovisual?
Primeiro há a defasagem do olhar, considerei. As cenas frenéticas deslizando como barra de rolagem de aplicativos e uma cacofonia de movimentos (golpes, cores, cortes) explodindo como fogos de artifício mentais, potencializada pela história, que narra acontecimentos a uma família de imigrantes em multiversos na terra dos sonhos.
A ideia em si de multiversos já amplamente desgastada, mas, ali, empregada como último recurso do qual se extrai finalmente a derradeira fibra de energia, finda a qual agora se pode considerar que tudo se esgotou, apenas para vê-lo ressurgir em outra película.
Esgotado, era como eu me sentia já aos 20 ou 25 minutos de exposição ao filme. Cansado como se houvesse corrido, mas uma corrida cuja distância eu havia atravessado apenas com os olhos. Uma prova de resistência retínica durante a qual minha visão tinha sido explorada, colonizada, ressecando-se a ponto de já não conseguir estabelecer qualquer nexo entre qualquer coisa a qualquer tempo. Tudo podia estar ali, tudo podia não estar, tudo podia estar e não estar simultaneamente, tudo tinha relevância e não tinha, e isso não fazia a menor diferença.
Não havia tempo para nada, o filme fazia questão de reiterar, repisava isso a cada trecho, pendurava letreiros em neon na frente do espectador atordoado por sua estética estridente. O tempo acabou, o planeta está se extinguindo, a vida em seu estado falimentar impõe urgência e adestramento a um novo regime de visualidade, um que não se permita concentração excessiva, tampouco contemplação.
Mas que regime é esse? O das redes, do TikTok, dos toques neurocognitivos e repetições que são a nossa coreografia digital, estruturada em cliques, deslizamentos e usabilidade suave que faz uma imagem ser substituída por outra e esta por mais outra e assim por diante, criando sucessivas cadeias de fotogramas em luz artificial com início e fim indistintos.
Era como se tivessem inventado tudo aquilo dentro de uma startup do Vale do Silício como parte da estratégia global das plataformas do complexo internético para salvar definitivamente as empresas de tecnologia de um futuro de regulamentações e sanções legais por décadas e décadas de deformação da atenção e danificação da capacidade de manter algum foco.
Um roteiro criado pelo ChatGPT para aliciar a agência sensória quando os sentidos, mesmo gastos e depauperados, começam a reparar que o ecossistema está se encaminhando para a última volta do parafuso. Para tanto, faz uso de estripulias que desfilam diante do nariz a uma velocidade incomum com a única finalidade de engajar.
É um filme para os tempos de áudio acelerado e séries cujas introduções, por mais belas e delicadas que sejam, desaprendemos a apreciar, seguindo pacificamente a sugestão de “pular”.
Porque já não há mais nada a fazer senão tentar viver todas as vidas possíveis em todos os lugares ao mesmo tempo.
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