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A praia ideal

Pensei bastante na distopia de uma praia sem sol, sem jangadeiro, sem peixes, iluminada unicamente por lâmpadas de LED e acondicionada por refrigeradores de ar, pavimentada com piso de porcelanato e orientada por corrimãos e passarelas que levam diretamente ao estacionamento do superprédio onde vivem os supermoradores de uma supercidade feita para poucos. Nas salas espaçadas e agradabilíssimas dessas fortalezas pós-pandêmicas, superfamílias esperam uma superpizza que chegará em curtíssimo tempo levada por um empregado cujo salário não paga certamente o IPVA de um único pneu do supercarro desse superconsumidor. Uma praia cujas areias recenderiam a aroma de shopping center, aquele adocicado do azulejo de essência facilmente identificável e que se aspira a léguas de distância, um cheiro inconfundível que encapsula todo um projeto de vida e assegura o conforto de que, ali, finalmente, se está a salvo e em paz como no átrio de uma igreja medieval isolada da peste. Uma praia sofisticadamente...

O fim da Cultura e a cultura como fim

  As reações ao fim da Livraria Cultura variaram entre o tom lamentoso e explicitamente afetivo e um contragolpe que acusava visão mais desencantada, cujo horizonte chamava a enxergar na empresa de livros não um santuário, mas um matadouro dos pequenos negócios. É possível que a Cultura tenha sido, ao mesmo tempo, esse céu e esse inferno? Que tenha abrigado as memórias de tanta gente, enquanto colonizava o mercado e se reproduzia de maneira fúngica, condenando casas do ramo como um vírus que se abate sobre um organismo saudável? Livrarias, mesmo as mais acanhadas e escondidas, são sempre lugares na entrada dos quais suspendemos certo modo pragmático de vida, colado ao dia a dia. Nelas andamos a ver se as horas se preenchem de outra maneira, como se à procura de algo que seja pergunta e resposta, que tenha uma chave para questões mal formuladas que carregamos todos. É, nesse sentido, espaço muito assemelhado com igrejas, onde a devoção se expõe – não a uma transcendência divina, mas...

Sem título

  Olhava a ponto de encurvar o corpo, dobrado sobre o parapeito da cacimba, o espelho d’água refletindo uma cabeça miúda, de vez em quando os braços acenando para os peixes lá no fundo, formas angulosas indo de um lado a outro o dia inteiro. O que o atraía à cacimba toda tarde? Disse à avó que eram os peixes, mas eles não tinham graça, eram tão escuros que mal se viam enquanto deslizavam, não eram como peixes dourados confinados em aquário. Talvez a fundura em si, o tipo de magnetismo que as profundezas lançam sobre os viventes, assim como o fogo, que carece de explicação, um traço de formação ao longo das eras e pronto, lá se estava prostrado diante do enigma. Quem sabe os amigos, mas costumava ficar sozinho por horas, a vista enterrada na água, o silêncio interrompido apenas quando a vizinha aparecia para retirar baldes cheios ou quando Damião passava do trabalho cortando caminho pelo quintal alheio.

O ChatGPT não sabe vaiar

  Numa entrevista fictícia com o ChatGPT, eu lhe faço perguntas triviais, tais como o que é “vergonha alheia” ou “biloto”, e lanço comandos inesperados e mesmo ilógicos, como a definição de “vaia cearense”, uma variante exótica do fenômeno pouco conhecida fora do estado. Como se trata de um suprassumo tecnológico, um Pinocchio maquínico, capaz de façanhas num piscar de olhos, sócio-majoritário de um sem-número de HDs de dados armazenados, suponho que, em algum cadinho de seu emaranhado algorítmico, haja uma solução para a minha indagação moleque, cujo propósito é não apenas medir o grau de conhecimento, mas de malícia. Afinal, máquinas sabem vaiar? A inteligência artificial, porém, se embaraça, tropeça nas palavras, alega estar em processo contínuo de aprendizagem, diz que em breve poderá ter todas as respostas a essas e outras questões e que sem dúvida o seu intuito é auxiliar, oferecendo informações precisas sobre quaisquer assuntos. Sei. Isso soa como qualquer adulto apanhado ...

Dialética do fã (2)

Fã ou “hater”? Pergunta-síntese da dinâmica virtual, a questão embute uma dualidade a partir da qual se organizam as vidas nas redes e para além delas, ou seja, uma troca que se dá em torno de um binarismo cujos pontos cardeais são, de um lado, o apoio incondicional (fã) e, do outro, o ódio cego (“hater”). Do amigo, do colega de trabalho e até mesmo das relações amorosas, exige-se hoje em dia essa espécie de contrapartida afetiva que prevê um vínculo sem arestas, feito todo com base numa adesão total que não aceita dissidência nem o mais remoto traço de crítica. “Meu (minha) namorado (a) não é apenas meu (minha) namorado (a), mas meu (minha) fã.” É-se fã de alguém como se é fã do Barcelona, de bolo de milho ou da Anitta, não havendo espaço para sentimentos conflitantes. O conflito, por si, é negativo, contraproducente e, sob o ponto de vista da gestão dos afetos, algo a ser evitado porque desorganiza o empreendimento social do qual se é sócio-majoritário e figura pública, como um CEO d...

A Estação e o Dragão (2)

  A Estação é o novo centro do olhar e do fluxo cearenses, um espaço de alta frequentação e performance de classe num estado habituado a marcações de origem muito evidentes. Terra de cercadinhos, de puxadinhos VIP, de acessos restritos, de elevadores de serviço etc. Lugar de letrados, de ilustrados, de desfile dos signos de pertencimento e de distinção, de filiações e adesões, altamente carregado de um sentido de visibilidade, tanto por sua finalidade arquitetônica – é amplo e feito para isso, ou seja, para a exposição de obras de arte e também de seu público – quanto pela natureza das relações que se estabelecem ali. Mas nisso não há qualquer novidade, todo equipamento cultural, por mais democrático que se pretenda, tem sempre em sua entrada um guichê de cobrança de pedágio simbólico sem o qual os consumidores/cidadãos não têm acesso às experiências projetadas. A roupa, o público, a segurança, tudo seleciona antes de qualquer seleção, tudo barra antes de qualquer obstáculo físico ...

Passagem

  Era isso, eu queria ir em frente, mas não sabia de nada. Eu queria outra vida, mas não sabia qual. Eu queria estudar, mas não havia escolhido o quê. Eu queria livros, mas não tinha dinheiro. Eu queria viajar e morar numa comunidade alternativa em Minas Gerais e fazer o caminho de Santiago de Compostela com minha primeira namorada, mas tive de me contentar com um emprego de entregador de pizza das 16h às 22h em troca de um salário cuja metade eu gastava com romances e a outra metade eu não sei exatamente o que fazia, mas juro que não era tanto assim a ponto de eu poder fazer uma farra. No barco eu me sentia como se de volta à sala, de volta a antes de fazer essas escolhas, uma pequena transgressão do tempo. Mas agora era diferente porque eu não tinha ninguém que me interrompesse. Podia ficar ali o tempo que fosse, sair e voltar, andar pela popa e a proa devastadas pela maresia e ferrugem e observar por quantos dias desejasse o movimento contrário. As ondas quebrando contra o metal...