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A praia da gente

A gente vive uma relação estranha com a praia, não digo com Fortaleza, mas com o litoral do Ceará, a parte intocada da faixa, salvo pelas pousadas e construções, algumas oficiais e outras nem tanto, algumas de autoridades e outras de artistas, num lugar onde o poder encontra a cultura numa ciranda de bons interesses e nenhum conflito. Queremos a praia ocupada parcialmente e detestamos que a devore a especulação imobiliária, o capital. A praia ideal é a que mantém seu núcleo de vila de pescadores, um ou outro chalé, que é pra receber os chegados de fora com alguma comodidade. Não mais que isso. Uma praia cenográfica, de preferência, com seus marcos que a distinguem de outras praias mais visitadas, que a façam única, indócil e domesticada ao mesmo tempo, paisagem já vista e exótica. Um lugar de exploração e novidade e também de segurança e garantias. Seus atrativos são a lonjura e essa ideia de exclusivismo que o nativo cultiva por gosto e classe social. Praia boa é praia afastada, sem m...

Chuva

  Cinco dias de chuva, e já me pego achando que era o normal, o mais comum, mas sei que, mesmo agora, enquanto o desavisado leitor se demora, o astro-rei talvez já tenha feito valer o decreto máximo que lhe dá direitos plenos de alumiar a vida do cearense o ano quase todo. Mas, vejam só, eis a chuva, nesses intervalinhos que parecem já durar bastante. Enquanto escrevo, tenho de correr à janela da sala e fechar tudo de novo, depois de tê-la aberto um segundo atrás, supondo que o dia seria de sol. Estava enganado, e assim têm sido os últimos dias. As roupas mal lavadas porque a umidade não lhes arranca o cheiro de guardado, os gatos como que hibernando, a casa cerrada e os cômodos frios, varridos unicamente por uma ou outra rajada de vento molhado que escape de uma fresta esquecida na pressa de sair. A madrugada, então, nem se fala. Foi de engelhar a alma, todos encolhidos, abraçando joelhos e deixando de fora da coberta sequer nesga do pé. No dia seguinte, no jornal, leio que atingi...

Respeite a nossa vaia

  A vaia cearense é um patrimônio. Está na mesma prateleira do Bode Ioiô e da Iracema de Alencar, do queijo de coalho e da farinha. Ouvi-la é ouvir o Ceará, seja no sertão ou na Champs-Élysées. É um artefato curioso, de sonoridade inconfundível, de modo que distingui-la de imitações é tarefa a que cada cearense se entrega com prazer e a cumpre com certa facilidade. Tome-se a falsa vaia do presidente, por exemplo, e digo falsa sem juízo de valor, unicamente com a finalidade de fazer entender duas coisas: não se trata de vaia genuína, nem cearense nem de outra naturalidade, tampouco carrega algum sentido, sendo tão somente o urro desembestado que está mais perto do rodeio de Barretos que obriga o gado a andar do que do concurso de vaias do João Inácio Jr. Quem já a escutou sabe do que estou falando. A vaia cearense exige uma articulação inusual do aparelho fonador, sem muita semelhança com a vaia comum. A vaia ordinária requer estreitamento dos lábios e jorro contínuo, algo que se ap...

Cai a máscara

  Em breve estaremos todos na rua de volta, mas sem um item essencial com que já tinha me acostumado e mesmo afeiçoado. A máscara. Saberemos viver sem ela? Nesses dois anos, acompanhou-nos a todo canto, foi uma companheira sem igual, suportando o hálito diário sem reclamar. Da manhã à noite, mascarados, respirando vapores que embaçavam os óculos, cantando ou falando sem sermos percebidos, bodejando ou rindo intimamente, de si para si. Apenas a máscara segredava, ciosa do que trazíamos ali numa conversa mais muda que falada. A máscara escondeu tanto quanto protegeu nesses tempos de pandemia. Foi um alívio tê-la em alguns momentos, quando pôr-se atrás do pano ajudava a aguentar o dia, deixando para os olhos a responsabilidade por toda expressão. Olhos cansados de tanto falar, de tanto carregar a comunicação de uma vida por todo o tempo de confinamento e trabalho remoto. Para tudo e para nada nos olhávamos mais no olho, e isso era um ganho, mas também uma perda de energia, uma ativida...

Marvelização do mundo

Há um processo em curso, o da marvelização do mundo e das relações, que consiste em tomar cada mínimo aspecto da vida como se fosse um desses filmes em que homens vestem cueca por cima da calça para enfrentar vilões exuberantemente marcados pela maldade, cada um deles com características e predicados morais muito bem definidos. O paladino anticorrupção, o macho tecnicamente infalível, o militar mímico, o sumo-bondoso, o engomadinho, o calça-apertada e por aí vai, com capas e atributos para todos os gostos e bolsos. Da guerra à política, de Putin a Biden, de Bolsonaro a Lula, a régua rasa da marvelização abarca tudo, produzindo um efeito de proximidade enganosa que faz com que todo e qualquer usuário de rede social se sinta imediatamente um analista de qualquer assunto, alguém apto a tecer comentários sobre um embolado cenário internacional diante do qual especialistas de todos os cantos do globo se sentem encafifados, sem saber o que dizer. Mas não ele, o “Marvel boy”, um inveterad...

A torre

  Apenas ontem percebi a torre espichada na orla, um olho de Sauron que se eleva a alturas hiperbólicas e de onde se pode acompanhar a vida de qualquer fortalezense, morador do Montese ou do Carlito, da Beira Mar ou do Joaquim Távora. O ponto mais alto da cidade é esse espinhaço de concreto cuja vizinhança não lhe faz sombra. Em terra de pouca planta e onde árvore é mato, é triste olhar o bicho se esticando verticalmente, engordado com orgulho pelo olhar amatutado de quem passa e espia, o pescoço curvado a ver se consegue dar com o terraço. O último andar, aquele estágio mais distante da linha térrea, lá onde a bola em fenda de fogo varre a nossa terra-média. Houve um tempo em que era o contrário, a vista abarcava o terreiro do vizinho, a curiosidade chegando ao quintal, onde a gente, ainda miúdo, caçava uma peça de roupa, um brinquedo, um cajueiro onde se trepar, uma qualquer diferença entre os nossos e os outros. Os muros, mesmo os mais altinhos, eram transpostos com facilidade...

Botão de desistência

Ouvi a expressão de passagem, enquanto zapeava pelas redes: botão da desistência, mecanismo que, se acionado, abre uma porta através da qual é possível ir-se a um lugar que não este. Uma dimensão que corre em paralelo na qual o real é menos áspero e as regras, diferentes. A facilidade de transpor realidades, de cruzar fronteiras unicamente dispondo dessa comodidade, que está ao alcance da mão – mas não de qualquer mão, apenas uma mão privilegiada, já habituada a escolhas, a preferir isto ou aquilo, a gozar desse poder de separar o que é do agrado do que não é. Um botão como esses tantos do controle remoto ou do aparelho celular, que, de alguma maneira, já funcionam como irradiadores de outro mundo, por si mesmos universos próprios que dragam a atenção, que recobrem o entorno de uma qualidade de irrealidade. No dia a dia, porém, sabe-se que essa facilidade não está a um toque do dedo. Não a encontramos instalada na cozinha ou no corredor, no banheiro ou ao lado da mesa de trabalho, do...