Pular para o conteúdo principal

Cai a máscara

 

Em breve estaremos todos na rua de volta, mas sem um item essencial com que já tinha me acostumado e mesmo afeiçoado. A máscara. Saberemos viver sem ela?

Nesses dois anos, acompanhou-nos a todo canto, foi uma companheira sem igual, suportando o hálito diário sem reclamar. Da manhã à noite, mascarados, respirando vapores que embaçavam os óculos, cantando ou falando sem sermos percebidos, bodejando ou rindo intimamente, de si para si.

Apenas a máscara segredava, ciosa do que trazíamos ali numa conversa mais muda que falada.

A máscara escondeu tanto quanto protegeu nesses tempos de pandemia. Foi um alívio tê-la em alguns momentos, quando pôr-se atrás do pano ajudava a aguentar o dia, deixando para os olhos a responsabilidade por toda expressão.

Olhos cansados de tanto falar, de tanto carregar a comunicação de uma vida por todo o tempo de confinamento e trabalho remoto. Para tudo e para nada nos olhávamos mais no olho, e isso era um ganho, mas também uma perda de energia, uma atividade extenuante adivinhar nesse outro o que se passava tão somente pelo olhar.

É como uma página escrita cuja totalidade perdêssemos, tendo adiante apenas uma frase solta, pescada. O rosto como um texto de sinais e letras visíveis. É isso que teremos de novo agora.

Mas o texto que torna à rua é o mesmo que se confinou, o mesmo coberto, criptografado sob a máscara para que pudéssemos caminhar ao largo da doença?

Não sei, tenho minhas dúvidas se de agora em diante vamos examinar com diferença os detalhes do rosto, a covinha, a curva da boca, o franzir do nariz, o arquear da sobrancelha, tudo harmoniosamente pretendendo dizer alguma coisa.

As pessoas são outras se as vemos unicamente a partir dos olhos. Às vezes imaginamos uma boca outra que não a que se revela, ou um queixo anguloso e não quadrado. O que a máscara velava era sempre uma surpresa.

É isso que volta, a metade do rosto novamente exposta, a parte mascarada à luz mais uma vez, o que implica certa nudez da face, uma transparência inequívoca.

Com a máscara a gente se punha a rir no anonimato, amparados por esse biombo que ajuda a disfarçar. Uma ferramenta essencial para o convívio em sociedade, a máscara podia muito bem ser adotada em qualquer circunstância, sobretudo essas que nos obrigam a interagir em vertigem.

Mas tudo passa, mesmo a pandemia, e aqui estamos mais uma vez, exibindo-nos em público com tudo que somos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...