Pular para o conteúdo principal

Chuva

 

Cinco dias de chuva, e já me pego achando que era o normal, o mais comum, mas sei que, mesmo agora, enquanto o desavisado leitor se demora, o astro-rei talvez já tenha feito valer o decreto máximo que lhe dá direitos plenos de alumiar a vida do cearense o ano quase todo.

Mas, vejam só, eis a chuva, nesses intervalinhos que parecem já durar bastante. Enquanto escrevo, tenho de correr à janela da sala e fechar tudo de novo, depois de tê-la aberto um segundo atrás, supondo que o dia seria de sol.

Estava enganado, e assim têm sido os últimos dias. As roupas mal lavadas porque a umidade não lhes arranca o cheiro de guardado, os gatos como que hibernando, a casa cerrada e os cômodos frios, varridos unicamente por uma ou outra rajada de vento molhado que escape de uma fresta esquecida na pressa de sair.

A madrugada, então, nem se fala. Foi de engelhar a alma, todos encolhidos, abraçando joelhos e deixando de fora da coberta sequer nesga do pé. No dia seguinte, no jornal, leio que atingimos a mínima de 21 graus Celsius.

A gente é desacostumada com chuva farta, que se torna visita quando resolve chegar. É festa em qualquer casa. Saudamos o aguaceiro como carta vinda de longe, ainda que nem saibamos de onde vem, para onde vai, se passa ligeiro, se é nuvem grossa ou fina.

O céu armado é cartão postal, a coluna d’água prestes a desabar, os muitos tons de azul em contraste com a alvura da areia da praia, os verdes e lilases dos guarda-sóis pontilhando como essas flores mais selvagens que nascem em qualquer canteiro incultivado de avenida em Fortaleza.

Besteira dizer, mas a chuva, para o cearense, é acontecimento, do tipo que quase nunca deixa de ser notado, quando começa ou quando para de repente, apresentando-se como novidade, um filtro através do qual se olha pela janela e a cidade é outra e outras as pessoas.

Por isso a surpresa quando, dias atrás, chovendo desde a manhã, dei por mim naturalizando a chuva, tomando-a como corriqueira, não fenomênica, como domesticada. Chuva não mais como visita, mas como gente da casa, com que se entende e desentende, com que se ata e desata.

Um nó se instalou: não se acostume com isso, chuva vem e passa. Já era março, quase abril, de maneira que me pus em alerta, descrente de que o tempo fosse permanecer o mesmo, já antevendo a temporada de sol castigando no estirão de abril a dezembro.

Mas qual o quê. Veio o mês seguinte, e a chuva não dava pé, despejando-se numa procissão de alagar rua mal caía no chão. Começando entre a boca da noite e a madrugada, quando essas coisas acontecem, e se derramando até de manhã, as notícias já correndo o mundo de que causara isso ou aquilo, embora se saiba que a chuva, por si mesma, não provoca nada.

É uma música de fundo, chuva sem pressa, detendo-se com cuidado nessa tarefa de ir se impregnando em cada coisa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d