Pular para o conteúdo principal

Botão de desistência


Ouvi a expressão de passagem, enquanto zapeava pelas redes: botão da desistência, mecanismo que, se acionado, abre uma porta através da qual é possível ir-se a um lugar que não este. Uma dimensão que corre em paralelo na qual o real é menos áspero e as regras, diferentes.

A facilidade de transpor realidades, de cruzar fronteiras unicamente dispondo dessa comodidade, que está ao alcance da mão – mas não de qualquer mão, apenas uma mão privilegiada, já habituada a escolhas, a preferir isto ou aquilo, a gozar desse poder de separar o que é do agrado do que não é.

Um botão como esses tantos do controle remoto ou do aparelho celular, que, de alguma maneira, já funcionam como irradiadores de outro mundo, por si mesmos universos próprios que dragam a atenção, que recobrem o entorno de uma qualidade de irrealidade.

No dia a dia, porém, sabe-se que essa facilidade não está a um toque do dedo. Não a encontramos instalada na cozinha ou no corredor, no banheiro ou ao lado da mesa de trabalho, docemente esculpida na parede como uma das tantas funcionalidades do lar conectado, com seus aparelhos inteligentes mobilizados remotamente ou por comando de voz. Faça-se luz, e a sala num instante se banha do matiz amarelado ou avermelhado, se o dia for de festa. Assim brincamos de deuses em casa.

Nesse sentido, um interruptor que, em vez de apagar a luz, apagasse a realidade talvez fizesse sucesso, principalmente em tempos de guerra e falas desastradas do presidente, um especialista na ruína e na falência verbal e física, um emissor cujo poder maior é fazer descer uma nuvem carregada sobre a cabeça de cada brasileiro e brasileira.

De repente, numa semana mais azeda ou num fim de mês apertado, disséssemos ao dispositivo: desisto momentaneamente. Um apagão então se abateria, um breu como o do Big Bang. E o que se seguiria?

Não sei, mas um conforto, uma escapada, uma fuga provisória do real quem sabe ajudasse, um refresco da enxurrada de notícias e da cobertura sistemática das mazelas, uma pausa “nisso tudo daí” – uma quebra inclusive nessa sintaxe tortuosa do governante, língua de tartamudeios, de solilóquios ilógicos.

Mas não é um dos atributos da Alexa, até onde sei, abrir uma brecha no concreto. Não uma desse tipo, como o tal botão da desistência, que, uma vez disparado, não recua, não volta atrás, desperta irrevogavelmente esse outro lado ao qual não existe recusa. Quem o acionou agora tem de ir, de cruzar a soleira e deixar pra trás seja o que for. Como fez o participante do programa televisivo, que, com um estalar de dedos, decidiu de moto próprio que deixaria aquilo para lá – o milhão e meio e tudo o mais.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d