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Respeite a nossa vaia

 

A vaia cearense é um patrimônio. Está na mesma prateleira do Bode Ioiô e da Iracema de Alencar, do queijo de coalho e da farinha. Ouvi-la é ouvir o Ceará, seja no sertão ou na Champs-Élysées. É um artefato curioso, de sonoridade inconfundível, de modo que distingui-la de imitações é tarefa a que cada cearense se entrega com prazer e a cumpre com certa facilidade.

Tome-se a falsa vaia do presidente, por exemplo, e digo falsa sem juízo de valor, unicamente com a finalidade de fazer entender duas coisas: não se trata de vaia genuína, nem cearense nem de outra naturalidade, tampouco carrega algum sentido, sendo tão somente o urro desembestado que está mais perto do rodeio de Barretos que obriga o gado a andar do que do concurso de vaias do João Inácio Jr.

Quem já a escutou sabe do que estou falando. A vaia cearense exige uma articulação inusual do aparelho fonador, sem muita semelhança com a vaia comum. A vaia ordinária requer estreitamento dos lábios e jorro contínuo, algo que se aproxima de um “uuuuu” em ondas, comum em protestos de salão, em que se vaia sem perder a pose.

Já a vaia made in Siará Grande se divide em duas etapas: um preâmbulo curto que começa com a vogal “i”, que abre a carreata sonora, seguindo-se de um “ei” que vai ganhando corpo, até formarem, como numa sinfonia avacalhada, algo parecido com um “ieiiiiiii” desinibido, parte gritado, parte soprado com força.

É uma manifestação típica de rua, e não se imagina o seu emprego para desaprovar a execução inábil de uma peça de Mozart, mas a um político que, pretendendo imitar os modos de falar do nativo, queira se passar por ele.

Embora o tom e a intensidade da vaia cearense variem de pessoa para pessoa – alguns têm garganta privilegiada, outros não –, ela é quase sempre parecida no resultado final, funcionando como uma identidade sonora.

À falta de qualquer documento no exterior, por exemplo, bastaria pedir ao pretendente a alencarino que, por favor, procedesse a uma vaia característica de sua região. Os incapazes de fazê-lo poderiam ter sua carteira de cearensidade cassada.

Digo isso, mas eu mesmo corro o risco de perder meu RG de cearense, por absoluta impossibilidade de ao menos chegar perto da emissão sonora fartamente conhecida por qualquer um de minha terra, um decalque imortalizado em programas dedicados ao assunto e na literatura local.

Somos uma gente que vaia. E vaia numa linguagem própria, em situações e com mensagens também previamente estabelecidas. Vaia-se por mangar, por insatisfação, por molecagem. Vaiam-se o calor, o sol, o prefeito, o governador e o presidente.

É coisa nossa, pessoal, pela qual temos zelo e a que cultivamos quase ao natural, como essas plantinhas que vão crescendo sem aguar mas que, um dia, florescem, tomando de conta do terreno. Assim é com a vaia.

Quando demos por nós, tínhamos vaiado o astro-rei em plena Praça do Ferreira, no coração da cidade, por motivo fútil, o que não chega a ser crime.

É um território que conhecemos bem, portanto, e isso fica como aviso aos desavisados, seja um vulgo ou autoridade de que patente for, principalmente aos que se arriscam na cópia malfeita: se for vaiar, vá na paz.

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