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Crie uma senha

  Crie uma senha de oito dígitos com pelo menos um múltiplo de dois e um primo, um algarismo divisível por três e outro que represente o número mínimo de títulos de Copa vencidos por Brasil e Alemanha, alternando-se caracteres em caixa baixa e alta, de modo que às baixas se sucedam às altas em razão de 3, sem repetições. A cada sequência de dois números, interponha uma exclamação ou interrogação, e a cada três insira um caractere a seu gosto, excetuando-se a arroba, que pode causar leitura errada do sistema. Repita a senha. Antes, marque todos os quadrinhos com semáforo entre os vinte dispostos em quatro sequências que misturam semáforos em si e apenas pedaços da haste ou poste de sustentação do semáforo, procedimento que instaura sempre essa terrível dúvida que nos leva a perder entre dez e quinze segundos pensando se temos algum tipo de déficit de inteligência ou se todas as pessoas passam por essa mesma dificuldade quando precisam criar uma senha. Concluído o processo, esteja a...

Paulo Guedes

  O ministro Paulo Guedes é o brasileiro mais feliz e bonito do país depois de Rodrigo Hilbert. PG, me permito chamá-lo assim, cresce progressivamente, enquanto a maioria de nós é pura estagnação, quando não descarado retrocesso, e por onde se olha há um déficit de tudo, de comida ao combustível. Mas, vejam só, PG é feliz naturalmente, na bonança e na escassez (principalmente na escassez). É quando o prato míngua e a carestia campeia sem freios de norte a sul que PG se regozija, exulta e, embevecido diante da bomba marcando sete reais o litro e da bandeja de patinho espetando 50 reais, diz: parla! Um renascentista às avessas, PG vê sua obra em toda parte, da sopa de osso à gordura de boi e ao pé de frango, que substituem a carne na mesa, mas por puro gosto e adesão às suas ideias. Jamais por falta de dinheiro. Da inflação à exorbitância do real em relação ao dólar, do desemprego à fuga de capitais e fechamento de empresas, porém, nada o desanima. Pelo contrário, as pioras sucessiva...

Desafio do silêncio

  Ao contrário do que pode ter parecido, o desafio do silêncio não consiste exatamente na falta de conversa ou no inteiro mutismo carente de assunto, mas numa prática comunicacional na qual não estejam presentes palavras muito gastas e cujo uso cause aborrecimento supremo e dores de cabeça planaltinas. Exemplos: presidente ou pandemia, ou presidente e CPI, ou quaisquer outras que, empregadas ou ouvidas de relance, provoquem o mesmo efeito de garfo arranhando o fundo da panela, que entre os cearenses se chama de gastura. O propósito expresso desse jogo de armar com peças faltando é estimular a imaginação, aquietar o juízo por dez ou quinze minutos, não mais que isso, forçar uma parada nessa necessidade constante e irrefreável de estar permanente e incansavelmente atualizado a respeito de certos assuntos. Sabem quando os computadores travam e os forçamos a desligar por meio daquele comando? Pois bem. É quase isso. Experimentem. É simples, talvez não no começo, mas, quando se pega o ...

Mania de pulseira

Os cearenses têm muitas manias, algumas boas e outras ruins. Entre as boas está a de andar arrastando a chinela, hábito que produz um conforto porque me faz lembrar de minha vó tangendo galinha no terreiro de casa.  E há as manias não tão boas. Cito uma apenas: a da pulseira. Mas não qualquer pulseira, de tira de pano ou de Michelin, de um artesão conhecido ou comprada no camelô para regular as energias do corpo. Falo da pulseira VIP, essa confeccionada em cores berrantes, quase sempre amarelo, verde ou azul, que se destacam ao longe, adornando pulsos delgados, de coloração branca, com pelos sedosos ou abrasados por um fim de semana na praia (mas não qualquer praia, uma praia mais afastada, com ares primitivos e comunidades de pescadores mas que aceite cartão e Pix). Quem usa a pulseira VIP quer dizer que foi a algum lugar aonde só os que a portavam podiam entrar, ou seja, é um passe de entrada. Não uma senha vulgar ou coisa que o valha, mas objeto exibível e de valor sem o qual a...

Tu tá bem?

  A pergunta embute uma outra, que se volta ao “eu” não digital e não social, esse que paga as contas, indicando que há uma vida fora e outra dentro. Uma regida pelas redes e seus códigos na qual a forma frequentemente está dissociada do conteúdo, e daí a interrogação em torno do que seria de fato o que cada usuário esconde, não havendo dúvida de que esconde ou mantém à sombra uma face, seja sentimento, seja uma condição. E uma outra vida do dia a dia, cotidiana, esse meio em que as validações das redes têm menos ou nenhum peso e as dificuldades materiais e de outros tipos se impõem. Vida nua, sem disfarce, longe da jogabilidade, de difícil contenção e refratária a filtros, sem tanto espaço para correção de cor e formato, salvo aqueles obtidos a custo e depois de certo tempo. É possível e até provável que as duas modalidades não coincidam, que uma e outra vida se afastem e se desgostem mutuamente, que não guardem entre si qualquer semelhança, exceto a casualidade de que orbitam o m...

Ventos

  Não consigo dormir, o vento me acordou. Zunindo pela casa, até que me levantei pra fechar a janela. Sinfonia de assobios que começam na sala e seguem pelo corredor, depois se perdem no quarto, no banheiro, não sei. Encontram uma maneira de entrar e sair sem serem notados, de sua passagem ficamos somente com esse passo ruidoso, como almas penadas cujo espectro produz essa presença sonora. Vejo se cerrei a janelinha do quarto menor, que me recuso a chamar de quarto de empregada ou a atenuar a expressão usando qualquer outra palavra. É apenas quarto, que tem serventia própria. Nele o vento não se acumula, procuramos registros de seu percurso, algo parecido com o que fazem os caça-fantasmas, direcionando aqueles equipamentos que detectam o ectoplasma. Mas não há nada, o quarto está vazio, nenhum objeto atirado ao chão por mão invisível ou corrente rastejando entre móveis, desviando-se da mesa e escapando por venezianas. Toda casa tem suas frestas, suas fossas, seus encanamentos com v...

Olimpianos

  Confesso que vi pouco dos jogos de Tóquio. Um salto aqui, um mergulho acolá, a derrota do vôlei de praia e as piruetas douradas da Rebeca Andrade. No geral, estive ausente. Desse pouco que vi, porém, algo chamou a atenção: nossa tara por essas histórias sofridas, de quase fracasso que, na reta final, se convertem miraculosamente em vitórias, algo que parece confirmar um destino mágico que contraria o script de insucesso típico do ser-se brasileiro. Um pensamento mítico guia o torcedor nacional: o de que, na hora H, algo nos fará chegar ali, por esforço, mas também porque a gente já sofreu e apanhou tanto que seria mais do que justo ganhar uma medalha. Como se as vitórias por si não fossem tão interessantes. Sabe como é: treinar em piscina e não em açude, ganhar uma prancha de verdade e ter um patrocinador e não precisar pegar as primeiras ondas empoleirado numa tampa de isopor, ter alimentação adequada no período da preparação e por aí vai. Foi assim que começou a vida do no...