Confesso que vi pouco dos jogos de Tóquio. Um salto aqui, um mergulho acolá, a derrota do vôlei de praia e as piruetas douradas da Rebeca Andrade. No geral, estive ausente. Desse pouco que vi, porém, algo chamou a atenção: nossa tara por essas histórias sofridas, de quase fracasso que, na reta final, se convertem miraculosamente em vitórias, algo que parece confirmar um destino mágico que contraria o script de insucesso típico do ser-se brasileiro.
Um pensamento mítico guia o torcedor nacional: o de que, na hora H, algo nos fará chegar ali, por esforço, mas também porque a gente já sofreu e apanhou tanto que seria mais do que justo ganhar uma medalha.
Como se as vitórias por si não fossem tão interessantes. Sabe como é: treinar em piscina e não em açude, ganhar uma prancha de verdade e ter um patrocinador e não precisar pegar as primeiras ondas empoleirado numa tampa de isopor, ter alimentação adequada no período da preparação e por aí vai.
Foi assim que começou a vida do nosso medalhista olímpico Italo Ferreira, uma história que dá um filme. Porque as coisas para o esportista brasileiro têm que ser sempre assim, dar um filme. O atleta não pode simplesmente ter condições de treinar, como talvez façam os maiores atletas vencedores dos jogos, nascidos nas grandes potências que, ao cabo das duas semanas, estão no topo das conquistas.
Por trás de cada medalha tem de haver um subenredo cheio de reviravoltas, uma trajetória pronta para virar o novo “Dois filhos de Francisco”.
Enquanto isso, a gente se pergunta por que não damos certo, por que temos que torcer para que um talento bruto se imponha por sua força de vontade, contrariando as dezenas e dezenas de enredos que ficaram pelo caminho.
Imagina se o Italo tivesse desistido quando viu a prancha de isopor. Imagina se o nadador que teve de se preparar fora do espaço habitual de uma piscina, como todos os seus adversários deviam estar fazendo naquela mesma hora, tivesse procurado coisa melhor pra fazer.
Imagina se a maior parte desses meninos e meninas esmorecesse ante essa dificuldade material que leva qualquer um a pensar duas vezes: será que eu realmente quero gastar boa parte da minha vida fazendo isso, sem qualquer garantia de que sequer vou conseguir competir em igualdade de condições?
Acho que, no fundo, a gente não gosta de vencedores, daquilo que deve formar uma cultura esportiva sólida: investimento, valorização da infância e da educação, do professor.
A gente gosta de histórias de superação. Queremos uma novela todo dia. Atletas com obstáculos quase instransponíveis que, contrariamente a tudo, conseguem triunfar. Vale para os esportes. Vale também para os estudos.
As histórias que comovem a audiência nacional são sempre as de quem, não tendo nada, deles não se esperando qualquer coisa, foram lá e fizeram o que ninguém jamais imaginou que conseguiriam.
Caramba, é uma menina nordestina, um cara do Maranhão, uma atleta do Ceará, uma garota do interior de São Paulo. É o espanto que vale, não o marasmo do projeto e uma expectativa planejada. Como público, somos tocados pelo que falta, para esses saltos de uma trama que nos faça pensar que as coisas têm jeito, mesmo que pareça que não.
A gente curte essa surpresa, o gozo da vitória fora de série. E se as chances são parcas e os oponentes superiores, melhor ainda. É um Davi contra Golias, mas que importa: se há uma possibilidade, vamos torcer. A desigualdade é apenas mais um elemento.
Passada a Olimpíada, a gente deixa pra lá, e cada atleta volta a ter que se virar sozinho pra treinar, bancar a rotina, material, pagar as contas, como a Vitória Rosa, eliminada nos 200 metros rasos. Daqui a quatro anos tem jogos de novo.
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