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Ventos

 

Não consigo dormir, o vento me acordou. Zunindo pela casa, até que me levantei pra fechar a janela. Sinfonia de assobios que começam na sala e seguem pelo corredor, depois se perdem no quarto, no banheiro, não sei. Encontram uma maneira de entrar e sair sem serem notados, de sua passagem ficamos somente com esse passo ruidoso, como almas penadas cujo espectro produz essa presença sonora.

Vejo se cerrei a janelinha do quarto menor, que me recuso a chamar de quarto de empregada ou a atenuar a expressão usando qualquer outra palavra. É apenas quarto, que tem serventia própria. Nele o vento não se acumula, procuramos registros de seu percurso, algo parecido com o que fazem os caça-fantasmas, direcionando aqueles equipamentos que detectam o ectoplasma.

Mas não há nada, o quarto está vazio, nenhum objeto atirado ao chão por mão invisível ou corrente rastejando entre móveis, desviando-se da mesa e escapando por venezianas. Toda casa tem suas frestas, suas fossas, seus encanamentos com vastas curvaturas perdendo-se dentro das paredes.

Lembro que nesta época do ano o vento ainda é ameno, não essa varrição de calçada e plantas entortadas, roupas caídas e poeira nos olhos. Portas batendo às duas da tarde, vidraças trepidando às três, enfim, uma sorte de fenômenos paranormais que ou embalam ou atrapalham o sono.

No meu caso atrapalhou. Acordei e depois não consegui mais dormir. E então pensei que o vento chegou mais cedo, que é como se tivesse pressa e houvesse chegado antes do combinado, como visita ansiosa que se antecipa e marca presença enquanto aguarda. O vento está nesse compasso de espera, desarruma a casa e volteia, insufla as cortinas brancas muito finas, que esvoaçam e se enroscam nas plantas que compramos e as instalamos nos cantos, uma para cada quina.

Gosto dessas plantas como estão, mas o vento as castiga, as folhas logo se dobram, perdem viço. Uma delas até morreu, tadinha, foi vergando até não haver mais jeito de torná-la rija novamente. Ressecou e morreu, como diz a música.

Mas outras verdejam ainda, estão a salvo das correntes mais fortes. Para essas criamos obstáculos, fechamos a janela do lado esquerdo, e agora nenhum vento passa. Servem-se de calmaria durante todo o tempo. Criamos o meio onde se mantêm.

Outro dia li uma nota da Capitania dos Portos sobre a quadra. Dizia que “a intensificação dos ventos alísios poderá provocar ventos de direção sudeste a leste, com intensidade de até 60 km/h (33 nós), na faixa litorânea do Ceará”. Em seguida, anotava os dias de maior ocorrência, encerrando o registro nesse tom formal com que tentam recobrir os fenômenos da natureza.

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