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Só rico lê

Verdade que só rico lê? Me fiz essa pergunta logo pela manhã, depois de contrastar os boletos e os livros, ambos se acumulando em proporções bíblicas na estante da sala. Alguma coisa estava errada com a teoria do Guedes, o ministro da Economia que se notabilizou por previsões que não se cumpriram. Das duas, uma: ou era um pobre que não lia ou um rico que lia. Como tenho livros e leio, mas sigo desafortunado no que diz respeito ao contracheque e minha proximidade com o PIB, fiquei confuso. Insatisfeito com exemplo tão prosaico que contradizia a versão oficial do governo, decidi puxar pela memória os ricos que conheço. Não são muitos. Uma cunhada, o primo que se casou com uma mulher cuja família já foi rica, mas hoje não é. O dono do mercadinho ao lado do prédio. Também lembrei da família de um proprietário de confecção no bairro antigo da infância. Eram ricos para os padrões da época e do lugar, mas não ricos na exata acepção do termo: usar Crocs, camisa com número estampado da Hollis...

Lockdown à cearense

Cearense não entende lockdown, e não é porque se trata de palavra inglesa, porque no estado temos a maior concentração de falantes do idioma fora dos EUA e da Inglaterra. Fica em Sobral, a poucos quilômetros da capital, terra de gente escolada onde todo mundo já nasce dotado de um repertório lexical de estudante do último semestre da Casa de Cultura Britânica. Molecagem à parte, as dificuldades com o termo não vêm de sua origem estrangeira, tampouco da prosódia tortuosa, que faz a língua do gentio se dobrar numa ginástica exaustiva. O problema está no DNA do nativo mesmo, avesso a qualquer ideia de confinamento, clausura, de tempestiva vedação de um fluxo, de proibição irrecorrível. Um caráter que rejeita essas noções de "não pode", "não faça", "não vá" – há sempre quem acha que pode, que faz e que vai, mesmo no pior momento de uma doença desgraçada. Cearense entende que lockdown é um jeito de parar tudo, menos a conversa na calçada. Sabe que é medida extr...

Está ruim, vai piorar

Tínhamos no início de tudo essa pretensão besta de que sairíamos melhores e que a pandemia seria oportunidade de um aprimoramento pessoal, algo como uma especialização em humanidades compulsória. E o que vemos é o contrário. Desandamos como gente, tudo em redor é prova de que os mortos não interessam, sejam uma dezena ou quatro mil. E essa suposição de um ano atrás parece agora não apenas infantil ou ingênua, mas um traço constitutivo de uma certa maneira de enxergar uma praga que traria consequências inexoráveis para todos, é verdade, mas sobretudo para uns, os mais vulneráveis, esses para os quais a onda que sobreviria não era uma micareta cultural, uma gincana do espírito, um recreio para os adultos ilustrados. De maneira que o espírito segundo o qual o confinamento seria como essa colônia de férias escolares é hoje não o erro, não uma falsa impressão ou demonstração do equívoco, mas o decalque, a comprovação de que, desde lá, março de 2020, a doença teria efeitos diferentes e se r...

Rastro

Apenas hoje percebi com mais clareza o rastro deixado pelas pernas da cadeira no piso de taco do escritório onde trabalho, um cômodo abarrotado de livros a que chamo ocasionalmente de quarto do meio e noutras, quando quero soar como alguém que tem um propósito, apenas de biblioteca. Ao levantar, arrasto a cadeira para sair e a devolvo a seu canto, o que produz esse trilho esbranquiçado, uma cicatriz no chão que foi se aprofundando à medida que o tempo de confinamento passava de um mês a dois e depois a três e finalmente seis e um ano. Hoje, ao entrar no quarto de passagem para o banheiro, porque o calor é insuportável e toda hora temos de ir ao chuveiro, notei o que tomei inicialmente como sujeira, mas que não saía com a vassoura. É uma das inúmeras marcas da casa durante esse tempo. Cito outra: a parede descascada da sala, projeto malogrado de uma pintura que comecei mas da qual desisti quando a tinta foi se soltando aos bocados, em nacos que se desprendiam como a pele dessas criatura...

Produtividade

 Hoje levantei mais cedo, separei tudo que tinha pra fazer, tomei café, deixei de um lado livros pra estudar e do outro cadernos para anotar, removi coisas que não usaria de imediato, liguei o computador, abri abas do navegador, tentei me limitar ao que era estritamente necessário, cliquei no que era apenas primordial. Acionei o processador de texto, escrevi uma ou duas frases, parei, tomei mais café, pensei que não é bom tomar tanto café assim, e ainda no meio de uma pandemia, e sobretudo num dia como este 31 de março, mas aí já era tarde e eu tinha bebido três xícaras do café que eu mesmo faço, três colheres de pó e duas de açúcar para um quarto de água na panela, de modo que quase sempre resulta num café mais forte, o que me deixa distraído em vez de concentrado, a atenção fisgada por qualquer movimento da casa, a cortina que estala, a geladeira que bipa, o gato que ronrona. Então coloco fones de ouvido, mas logo essa invasão auricular começa a incomodar, tiro os fones, fecho as...

Manuscrita*

  A letra degenera? A minha, sim, a manuscrita, a que sai do encontro da ponta da caneta ou do lápis com a superfície do papel ou de outra qualquer, a que resulta do movimento repetitivo do pulso, que inclina a cada nova curva do alfabeto. Falo dessa letra miúda, dançante, longilínea ou cartesiana: a letra muda. A minha foi degenerando, degenerando, até chegar ao estado atual de garrancho, de coisa única, emaranhado de fios que apenas remotamente guardam alguma semelhança com a letra bonita, quase feminina, da 7ª série. A dúvida é se a falência da letra corresponde a outra, pessoal, moral, estética, ou se uma não tem que ver com a outra, se são domínios separados da experiência, sendo a letra uma ferramenta que se deforma gradualmente sem que possamos fazer nada a respeito. Será assim? É a letra um instrumento de corte que se desgasta naturalmente ao limite da cegueira? É a letra reflexo de uma modalidade de pensamento retilíneo, contínuo, compassado, de palavras que se juntam vaga...

Envelheço na pandemia

Vasculhava a estante à procura de sabe-se lá o quê quando parei numa foto da festa junina da escola da minha filha em 2019. É uma imagem recente, reconheço a camisa que usava. Tudo nela ainda se mantém fresco. Mas pareço outra pessoa. Mais jovem, menos cabelo branco, mais sorridente, menos pesaroso do que hoje. Desconfiado, tento me convencer de que era o ângulo, a luz, o filtro, mas sei que não era. Ninguém da família havia morrido até então. Nunca ouvira falar de Covid, tampouco de vacina ou de cloroquina. Tinham se passado apenas seis meses de governo Bolsonaro. Eis a diferença entre o eu de agora e aquele. Menos de dois anos depois, tenho a sensação de que envelheci mais do que esses pouco mais de mil dias. Envelheci mais do que supunha que envelheceria, do que costumo envelhecer de um ano para o outro, mais do que os 40 anos completados em meio à quarentena fazem crer. Vou ao espelho confirmar essa teoria. Checo a raiz dos cabelos, inspeciono rugas, mapeio a fronte e o alto da cab...