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Um ponto

  Convém esboçar uma ideia de futuro, mas estou farto de tudo que não seja o hoje e o amanhã, no máximo o depois do amanhã, que já considero um estirão muito além do alcance dos dedos e da boca, com os quais vamos buscando sempre o de que mais precisamos. O ano passou-se como de costume. Sem queima, a contagem da TV demarcando a virada, na sacada de um apartamento alguém soprava um instrumento melodioso e nele esse tipo de música cuja maior serventia é inspirar um estado falsamente reflexivo no qual nos pomos diante do que não sabemos. Uma reza em tudo muito apoucada para o menor desafio. Depois fomos à rua, andamos à toa, e em tudo na cidade o tempo não se refletia. Era rito sem rito, fogos pipocando de quando em quando, mas, fora isso, nada. Sorrio para essa falta, tenho com ela uma ligação qualquer. No dia seguinte acordei perto do meio-dia, desorientado e sem muita cabeça para as pilhas de livros na mesa, os lápis, os blocos, os tantos projetos, os compromissos que fui rabisc...

Crônica só pra você

 Amanhã o ano se encerra, então esta é uma crônica destinada a você, que se sente um abestado porque não vai a uma festa. Porque passará a virada do ano em casa sozinho ou acompanhado de poucas pessoas, e não na praia ou num cercadinho VIP no qual o coronavírus se sente intimidado e socialmente excluído.  Afinal, não temos vacina, mas temos pulseirinha fosforescente, que é um acessório muito eficiente para manter distantes os indesejados e aqueles em desacordo com certos padrões de beleza e de dinheiro, embora tenha minhas dúvidas se isso funcionaria com um microrganismo que se transmite pelo ar e obstrui a respiração, levando à morte. Por isso eu gostaria de lhe dedicar umas poucas palavras de conforto. Por esse gesto sacrificial, de entrega e também de autopreservação. Gostaria de lhe dar um abraço e dizer que tudo isso há de ser recompensado em algum momento. Que o papel de trouxa que você se sente desempenhando agora terá uma alteração intempestiva antes do final dessa his...

É massa, mas é paia

O cearense é um bicho massa e paia ao mesmo tempo. Vaia o sol num dia de chuva. É massa. Ri de tudo e na hora errada. É paia. Faz da gambiarra um passaporte para a felicidade. É massa. Prefere o remendo à solução. É paia. Adora história de menino pobre que passou no vestibular mais difícil da cidade. É massa. Gosta de se ufanar dos gênios que produz em escala industrial nos colégios particulares. É paia. Divide a sombra do poste com outra pessoa. É massa. Corta as árvores. É paia. Segura a porta do elevador pra quem está chegando. É massa. Estaciona na vaga do idoso. Paia. É banhado (a) e cheiroso (a). Massa. Joga lixo pelo vidro do carro. Paia. Faz chuva de gliter no Carnaval. Massa. Atira um punhado de maisena no olho. Paia. O cearense vive orbitando nesse universo binário do massa/paia. A gente é massa porque é vocacionado à galhofa. Mas é paia porque odeia quando tem de segurar o riso, que, entre nós, é uma espécie de frieira atávica passada de geração para geração e perpetuada nos...

Conversa com o Papai Noel

Quando acordei, o velho já estava na cozinha da pousada tomando café. Vestia uma bata branca que lhe dava um ar de quem exerce a função oracular do aconselhamento amoroso. Calçava sandália de couro e usava um colar metálico com uma estrela de cinco pontas. Tinha os cabelos muito brancos caindo em cachos, enrolando-se mais ainda nas pontas, e uma barba igualmente alva, tão alva quanto enchimento de travesseiro e clara de ovo. Era gordo, mas talvez menos do que a sua profissão recomenda. Trocamos bom-dia e nos sentamos. O velho então perguntou se eu era músico. Disse que tinha me ouvido cantar na noite anterior. Eu falei que ele tinha se enganado, mas, na verdade, eu não lembrava de muita coisa, apenas que tinha bebido um pouco e depois caído na cama. Fiquei calado. Presumi que fosse um viajante do tempo, um jogador de cartas, um místico que atravessava os sertões como o beato José Lourenço fizera muito tempo atrás. Não era nada disso. Era um Papai Noel de shopping. Chegara no último fi...

O ano acaba

Não parece dezembro, pensei comigo na virada do mês enquanto decidia se comprava uma árvore de Natal nova ou montava uma com material que acumulamos ao longo do ano. Caixas, tubos de pasta, pacotes enviados pelos Correios e toda sorte de quinquilharia sem serventia. Parece março ou abril, mas não 23 de dezembro de dois mil e vinte, o fim do ano. Pergunto ao caixa da loja, que confirma: estamos a poucos dias. De quê?, eu insisto, certo de que o tempo havia sido acelerado, numa manobra conjunta do Serasa com o banco para que pagássemos nossas dívidas duas vezes. Ledo engano. O Natal está logo ali, disse o atendente antes de passar os produtos na leitora óptica. Deu R$ 49,90, completou. Desisto da árvore. Sinto cansaço, mas não é como tivesse cumprido uma jornada noite adentro. É mais como se não tivesse saído do lugar e permanecesse dando voltas em torno do mesmo ponto, batendo cabeça ou esperando na fila das Americanas com ar-condicionado desligado e cercado de barras de chocolate e s...

Prove que você não é um robô

O inferno deve ser como uma sucessão interminável de momentos nos quais digitamos uma senha e a inteligência artificial do site ao qual tentamos ter acesso a reprova, considerando-a demasiado fraca. O que nos obriga a voltar e refazer a senha, agora acrescendo algarismos e sinais de exclamação, não a ponto de torná-la uma ameaça para nós mesmos e cair no esquecimento. Mas, a despeito desse empenho que começa a nos enfezar, a senha continua insuficiente e é rejeitada por essa entidade imaterial, numa situação tipicamente kafkiana na qual temos de provar que somos não apenas nós mesmos, mas que somos humanos e não robôs. De maneira que reatamos o fio da meada e, feito Ariadne, tornamos ao começo, agora tentando identificar padrões que tenham passado em branco, como aniversários ou números em sequência, falhas e repetições. Eliminamos então infantilidades como 010203 ou 0504030201, senhas universais cuja previsibilidade são a prova de que a média de inteligência está realmente muito aba...

Casmurro

Perdoem a casmurrice, se pareci casmurro , é apenas o calor de Fortaleza neste dezembro infernal de confinamento ao cabo de dez meses quando, talvez sem razão, penso no Papai Noel do shopping. Protegido atrás de um biombo de acrílico levantando-se de tempos em tempos para deixar-se fotografar ao lado de crianças a quem, por dificuldade, escuta muito baixo, mesmo com o sistema de som instalado de modo a facilitar a troca de confidências entre os pequenos e o velhinho, que se empoleiram nas pontas dos pés e lhe pedem de bonecos a PlayStation. A fila interminável de pais e mães sobraçando sacolas, as máscaras, algumas caídas, inflando ao ritmo da respiração descompassada se precisam correr para atalhar um pequeno que escapuliu em direção a sabe-se lá que atrativo, um filhote exibido na vitrine da loja ou um palhaço que desfila sobre patinete elétrico fazendo acrobacias. A mágica postiça do Natal reproduzida na grama sintética e na música que se repete a intervalos regulares e a qual a moç...