Pular para o conteúdo principal

O ano acaba


Não parece dezembro, pensei comigo na virada do mês enquanto decidia se comprava uma árvore de Natal nova ou montava uma com material que acumulamos ao longo do ano. Caixas, tubos de pasta, pacotes enviados pelos Correios e toda sorte de quinquilharia sem serventia.

Parece março ou abril, mas não 23 de dezembro de dois mil e vinte, o fim do ano.

Pergunto ao caixa da loja, que confirma: estamos a poucos dias. De quê?, eu insisto, certo de que o tempo havia sido acelerado, numa manobra conjunta do Serasa com o banco para que pagássemos nossas dívidas duas vezes.

Ledo engano. O Natal está logo ali, disse o atendente antes de passar os produtos na leitora óptica. Deu R$ 49,90, completou. Desisto da árvore.

Sinto cansaço, mas não é como tivesse cumprido uma jornada noite adentro. É mais como se não tivesse saído do lugar e permanecesse dando voltas em torno do mesmo ponto, batendo cabeça ou esperando na fila das Americanas com ar-condicionado desligado e cercado de barras de chocolate e salgadinhos que não pretendo comprar.

No calendário, paramos de arrancar folhas, ou, pior ainda, a cada página virada, o mês se repete, feito esses filmes dos anos 1980 em que o mocinho tenta correr do vilão com máscara que o persegue em passos lentos, mas sempre o alcança ao final.

É um bom resumo do que foi o Brasil em 2020, um ano inteiro concentrado num mês cujos 30 dias se recusaram a acabar, sucedendo-se sucessivamente sem cessar, multiplicando-se em novas e tristes notícias, salvo um ou outro respiro (Crivella preso, que alívio), como uma live do Caetano que vem lembrar de que nem sempre fomos assim.

Ou será que já éramos assim e ninguém sabia? Esse é meu maior temor, o de que vinte-vinte tenha apresentado o Brasil de verdade, que tenha nos confrontado com o espelho, o que somos ao fim e ao cabo, desautorizando qualquer otimismo. Mas então lembro do Paulinho da Viola e tento esquecer esse Dia da Marmota.

Porque essa é outra sensação que tenho, a de que estamos confinados na versão nacional desse clássico, encapsulados num discurso de Bolsonaro televisionado pela Record e reprisado pelo “Domingo Espetacular” em looping, com destaque para os perdigotos presidenciais saltando a metros de distância, numa hipérbole do nosso fracasso.

Um negócio realmente tão pavoroso quanto acordar desnorteado de madrugada com a televisão ligada e dar de cara com o “Fala que eu te escuto” na sala escura, o apresentador com expressão sinistra e aquela tarja vermelha com uma enquete que convida a revisitar os seus piores pesadelos. Não foi fácil, nem continuará a ser.

Pensando nessa imaterialidade do ano que termina e na fluidez temporal, lavo a louça em casa com a TV ligada, vou ao banheiro com a TV ligada, checo o celular quando acordo e vejo que esqueci a TV ligada.

A TV ligada se tornou a paisagem sonora da casa, o ruído que se incorporou a uma linguagem doméstica, o meu termômetro da passagem do tempo – se a apresentadora está com outra roupa, então é outro dia.

Mas o calendário diz outra coisa. O calendário diz que o ano está acabando, que estamos perto de 2021, quando tudo será diferente, mas eu não me importo com tudo, apenas com as coisas que são realmente importantes: a vacina, a saúde, o amor e, se possível, o carnaval.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d