Pular para o conteúdo principal

Crônica só pra você

 Amanhã o ano se encerra, então esta é uma crônica destinada a você, que se sente um abestado porque não vai a uma festa. Porque passará a virada do ano em casa sozinho ou acompanhado de poucas pessoas, e não na praia ou num cercadinho VIP no qual o coronavírus se sente intimidado e socialmente excluído. 

Afinal, não temos vacina, mas temos pulseirinha fosforescente, que é um acessório muito eficiente para manter distantes os indesejados e aqueles em desacordo com certos padrões de beleza e de dinheiro, embora tenha minhas dúvidas se isso funcionaria com um microrganismo que se transmite pelo ar e obstrui a respiração, levando à morte.

Por isso eu gostaria de lhe dedicar umas poucas palavras de conforto. Por esse gesto sacrificial, de entrega e também de autopreservação. Gostaria de lhe dar um abraço e dizer que tudo isso há de ser recompensado em algum momento.

Que o papel de trouxa que você se sente desempenhando agora terá uma alteração intempestiva antes do final dessa história na qual, quem sabe, você talvez seja apresentado como o herói que de fato imagina que é.

Eu teria ainda outras expressões edulcoradas e de estímulo do tipo “no pain, no gain”, que amenizariam essa sensação extenuante e agorafóbica de que apenas você não está saindo de casa para se enfiar num salão de festas com outras 150 pessoas suarentas e determinadas a tirar todo o atraso de nove meses de confinamento numa única noite durante a qual a pandemia, magicamente, estaria suspensa e todos os quase 200 mil óbitos seriam tão somente contabilidade fria.

Agradecido, eu reconheceria que, tal qual um cordeiro bíblico, você se imola no altar da coletividade abrindo mão de todo o laço social e da queima de fogos virtual projetada no céu, além das comidinhas nas festas privadas e do champanhe, dos encontros e dos contatos, de liberar a Pugliesi e o Carlinhos Maia que existem em você, tudo isso em nome do quê?

De evitar uma segunda onda de mortes das quais, a esta altura, nem todo mundo se lembra, seja porque sumiram da escalada do “Fantástico”, seja porque, afinal de contas, o que importa é cuidar de si e da nossa (da sua) sanidade mental.

Eu diria ainda muito mais, não fosse o fato de que se manter em casa, sem contato e protegido, é nada menos do que a sua obrigação e que fazer papel de abestado é praticamente um esporte nacional desde pelo menos 2018, quando mais da metade do Brasil elegeu um presidente ruminante cuja maior vocação é afastar para muito longe qualquer possibilidade de cura, saúde e felicidade, um serial killer com barriga estufada incapaz de chutar uma bola em direção ao gol sem cair de boca na grama.

Dito isso, o que me restaria senão tentar convencê-lo de que o problema não é com você?

De que não é você que é estúpido e ingênuo (talvez até seja, mas não por isso) porque está confinado exatamente na virada do ano, enquanto quase todo mundo do condomínio viajou e vai celebrar o Réveillon na mesma casa no litoral, mas seguindo todos os “protocolos sanitários”.

Não é que você seja burro, entenda, é apenas que 2020 não foi um ano para gente como você, que ainda acredita em coisas como vacina, que a Terra é redonda, que armas matam e que “rachadinha” é corrupção. Quem sabe no ano que começa daqui a 48 horas você tenha um pouco mais de sorte.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d