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É massa, mas é paia

O cearense é um bicho massa e paia ao mesmo tempo. Vaia o sol num dia de chuva. É massa. Ri de tudo e na hora errada. É paia. Faz da gambiarra um passaporte para a felicidade. É massa. Prefere o remendo à solução. É paia. Adora história de menino pobre que passou no vestibular mais difícil da cidade. É massa. Gosta de se ufanar dos gênios que produz em escala industrial nos colégios particulares. É paia. Divide a sombra do poste com outra pessoa. É massa. Corta as árvores. É paia. Segura a porta do elevador pra quem está chegando. É massa. Estaciona na vaga do idoso. Paia. É banhado (a) e cheiroso (a). Massa. Joga lixo pelo vidro do carro. Paia. Faz chuva de gliter no Carnaval. Massa. Atira um punhado de maisena no olho. Paia. O cearense vive orbitando nesse universo binário do massa/paia. A gente é massa porque é vocacionado à galhofa. Mas é paia porque odeia quando tem de segurar o riso, que, entre nós, é uma espécie de frieira atávica passada de geração para geração e perpetuada nos...

Conversa com o Papai Noel

Quando acordei, o velho já estava na cozinha da pousada tomando café. Vestia uma bata branca que lhe dava um ar de quem exerce a função oracular do aconselhamento amoroso. Calçava sandália de couro e usava um colar metálico com uma estrela de cinco pontas. Tinha os cabelos muito brancos caindo em cachos, enrolando-se mais ainda nas pontas, e uma barba igualmente alva, tão alva quanto enchimento de travesseiro e clara de ovo. Era gordo, mas talvez menos do que a sua profissão recomenda. Trocamos bom-dia e nos sentamos. O velho então perguntou se eu era músico. Disse que tinha me ouvido cantar na noite anterior. Eu falei que ele tinha se enganado, mas, na verdade, eu não lembrava de muita coisa, apenas que tinha bebido um pouco e depois caído na cama. Fiquei calado. Presumi que fosse um viajante do tempo, um jogador de cartas, um místico que atravessava os sertões como o beato José Lourenço fizera muito tempo atrás. Não era nada disso. Era um Papai Noel de shopping. Chegara no último fi...

O ano acaba

Não parece dezembro, pensei comigo na virada do mês enquanto decidia se comprava uma árvore de Natal nova ou montava uma com material que acumulamos ao longo do ano. Caixas, tubos de pasta, pacotes enviados pelos Correios e toda sorte de quinquilharia sem serventia. Parece março ou abril, mas não 23 de dezembro de dois mil e vinte, o fim do ano. Pergunto ao caixa da loja, que confirma: estamos a poucos dias. De quê?, eu insisto, certo de que o tempo havia sido acelerado, numa manobra conjunta do Serasa com o banco para que pagássemos nossas dívidas duas vezes. Ledo engano. O Natal está logo ali, disse o atendente antes de passar os produtos na leitora óptica. Deu R$ 49,90, completou. Desisto da árvore. Sinto cansaço, mas não é como tivesse cumprido uma jornada noite adentro. É mais como se não tivesse saído do lugar e permanecesse dando voltas em torno do mesmo ponto, batendo cabeça ou esperando na fila das Americanas com ar-condicionado desligado e cercado de barras de chocolate e s...

Prove que você não é um robô

O inferno deve ser como uma sucessão interminável de momentos nos quais digitamos uma senha e a inteligência artificial do site ao qual tentamos ter acesso a reprova, considerando-a demasiado fraca. O que nos obriga a voltar e refazer a senha, agora acrescendo algarismos e sinais de exclamação, não a ponto de torná-la uma ameaça para nós mesmos e cair no esquecimento. Mas, a despeito desse empenho que começa a nos enfezar, a senha continua insuficiente e é rejeitada por essa entidade imaterial, numa situação tipicamente kafkiana na qual temos de provar que somos não apenas nós mesmos, mas que somos humanos e não robôs. De maneira que reatamos o fio da meada e, feito Ariadne, tornamos ao começo, agora tentando identificar padrões que tenham passado em branco, como aniversários ou números em sequência, falhas e repetições. Eliminamos então infantilidades como 010203 ou 0504030201, senhas universais cuja previsibilidade são a prova de que a média de inteligência está realmente muito aba...

Casmurro

Perdoem a casmurrice, se pareci casmurro , é apenas o calor de Fortaleza neste dezembro infernal de confinamento ao cabo de dez meses quando, talvez sem razão, penso no Papai Noel do shopping. Protegido atrás de um biombo de acrílico levantando-se de tempos em tempos para deixar-se fotografar ao lado de crianças a quem, por dificuldade, escuta muito baixo, mesmo com o sistema de som instalado de modo a facilitar a troca de confidências entre os pequenos e o velhinho, que se empoleiram nas pontas dos pés e lhe pedem de bonecos a PlayStation. A fila interminável de pais e mães sobraçando sacolas, as máscaras, algumas caídas, inflando ao ritmo da respiração descompassada se precisam correr para atalhar um pequeno que escapuliu em direção a sabe-se lá que atrativo, um filhote exibido na vitrine da loja ou um palhaço que desfila sobre patinete elétrico fazendo acrobacias. A mágica postiça do Natal reproduzida na grama sintética e na música que se repete a intervalos regulares e a qual a moç...

Clarice adulterada

Há no rito de lembrar a Clarice Lispector centenária o risco de perdê-la, não somente por se tratar de efeméride, palavra feia cujo sentido escapava a Macabéa.  Mas porque, na obra clariciana, impõe-se esse fundo irredutível, uma matéria-viva de linguagem que não se esgota ou se permite traduzir facilmente para o agora das redes sociais, por exemplo, para citar esse espaço no qual o nome de Clarice se transmutou, passando a figurar como quintessência de uma positividade. Como se a domesticassem, como se a quisessem palatável, mas Clarice não é digerível, tampouco domesticável. É e continua sendo escrita selvagem. Nisso tudo, portanto, mais que retomar trajetória ou mesmo reviver os dramas da autora, tinha interesse em entender na Clarice (me permitam o artigo definido que encurta distâncias) o que permanece desafiador, o que nela ainda é interrogação, o que interpela o leitor tanto tempo depois. O que move Clarice hoje? O que a mantém viva? Deixo de lado essa aura edificante que lh...

Caderno de hábitos esquecidos

 Anoto tudo que esqueço, cada pequeno acontecimento, o mínimo revés ou contratempo. Tenho fixação pelo gesto suspenso, o ato que falha, a falta, o elemento que se extravia.  Por isso o registro paciente do que não há, a anotação deliberada daquilo que tardou. Uma escrita que retrocede, não avança, quando muito gira sobre o próprio eixo, como dança que nunca se desenraíza. Lembro de ainda menino fazer a caligrafia. Desenhava a letra, caprichava a cada curva da vogal ou consoante, a mãe ao lado mantendo a seu alcance também um caderno. Capa preta, impressão de que encerrava ali uma vida que se recusava a compartilhar comigo. Segredos, sim, mas por que deixá-los à vista? Eu não sabia. Lembro de escrever: o que escreve a mãe? Era uma brecha que tentava ocupar, o espaço vazio que não incomodava, pelo contrário. Na escola tinha orgulho de dizer que tinha uma mãe cuja vida não se revelava por completo, uma mãe que tinha um caderno proibido. Parei de escrever, de rascunhar essas ninh...