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Meu nome é Antonia (2)

De vez em quando, Antonia fugia, abria o portão e perdia-se no bairro, aproveitava uma brecha, a mãe que estivesse cortando a carne ou fervendo o leite, o pai que estava fora, a avó que acompanhava a novena, os irmãos distraídos com brincadeiras e eu deitado no sofá esquentando as tardes com sonhos de cabelos cheirando a creme Neutrox. Eu a via escapar sem dizer nada, primeiro a porta e depois o portão que dava para uma área que meu pai usava para se exercitar. E, finalmente, a grade da rua, mantida sem cadeado por causa do constante ir e vir que demarcava a rotina da casa, a mãe que saía ou a vizinha que entrava, um amigo que chegasse etc. Nessa época, o bairro era um imenso conjunto de casas semelhantes construído décadas atrás para trabalhadores que vinham do interior à capital à procura de vida melhor mas acabavam por se estabelecer tão ou mais precariamente, de maneira que cada residência se distinguia da outra apenas pela cor e às vezes nem isso, num padrão geométrico e de palet...

Menina e papelão

A filha pediu que escrevesse uma história sobre papelão. “Uma menina que brincasse com papelão”, explicou, que fizesse do papelão sua matéria de sonho. Que o tomasse nas mãos e desdobrasse, dele modelando casa, carro, boneca, árvore, sol e também um cachorro. Tive dificuldade, falhei. Não imaginava que pudesse haver outro uso para o papelão, mas daí lembrei que eu mesmo construía cidades de papelão quando criança. Dispunha tudo na sala, ruas, ônibus, prédios, cobria com folha de ofício e então povoava. Estava vivo. Eram caixas de sapato, tubos de creme dental que iriam para o lixo. Coisas assim. Filha, já sei como fazer, respondi, ainda que não soubesse de todo naquele momento, porque agora tenho mais dificuldade de me desincumbir dessas urgências do dia a dia. Como se muito grande para entrar na toca do coelho branco. Careço de mais tempo, mais jeito, um esforço mesmo. Mas funciona, e somente depois começo a fantasiar essa menina às voltas com retalhos de papelão, fragmentos de mundos...

Francisco

  Nessa mesma viagem do meteoro , conheci o Francisco, que pastora uma estátua dia e noite numa cidadezinha do interior do Ceará. Cuida para que não se deteriore, vende quinquilharias e orienta para as rezas. Ocupa-se inteiramente da saúde do santo, cujo nome agora não lembro, mas posso pesquisar e depois volto aqui pra contar melhorzinho, com detalhes. Pois o Francisco, que é sozinho na vida, trepou-se no oco da estátua para pintar a cabeça do santo, a escada quebrou-se e ele passou o dia inteiro suspenso, sem poder descer nem ninguém que o acudisse porque nesse dia o povo da cidade não deu trela ao sagrado e preferiu gastar o tempo com as coisas mundanas, com os pecados. Apenas no dia seguinte apareceu no terreiro uma filha do Francisco que mora por perto e o procurou aflita na casa. Sem dar por ele, foi ao quintal. Como não o achasse, olhou pra estátua e, no alto, estranhou que houvesse um ponto escuro. Era o pai. A história é contada pelo Francisco encostado numa sombra de ár...

Avistamento

       O burburinho, e então os vídeos pipocando nas redes sobre o avistamento de um objeto no céu, testemunhos e rapidamente a conclusão: eram os chineses que invadiam o Brasil. Não era, mas fiz a associação entre o rastro de luz e o meteoro que riscou o estado meses atrás e cujos fragmentos não foram ainda encontrados. Sumiço. Ninguém deu por nada ainda. Dizem que se esfarelou em atrito, desfez-se todo. E lembro que me destaquei de Fortaleza pra serra atrás de caco de pedra caída do espaço, a filha pedindo “pai, traz um pedaço da Lua”. Trago, filha, se achar. Não achei, nem acharia. Diabo de invenção essa de sair no meio do mundo caçando o que se findou. Cheguei a entrar na mata e bater na porta da casa do povo, que, rindo, apontava mil e uma pistas, de pedregulhos dentro de lagoas a outras besteiras que, na hora, não vi que eram pura invencionice. Mas, como na série que eu via quando menino, eu queria acreditar. Por isso nem me importei quando me mandaram esse víd...

Dia do voto

 Voto no mesmo lugar há mais de 20 anos, uma escola de bairro de periferia com muro amarelo e verde descascado ao lado de uma feira, ou a feira é que lhe faz vizinhança, não sei quem chegou primeiro. Escola pública, nota-se logo na entrada e pelo nome, que homenageia um deputado.  Iniciais seguidas de um Carvalho ou Bezerra ou Pereira, esses sobrenomes típicos e sumamente comuns que batizam de hospitais a viadutos. Não tenho mais conexões com o bairro. O bairro inteiro na verdade sumiu e em seu lugar construíram um bairro cenográfico da noite para o dia. Logo, todo mundo que encontrei no domingo é figurante, gente paga para desempenhar seu papel e simular um passado. O vendedor de picolé, o traficante na esquina balançando uma chave de camiseta e boné, o fiscal da sala, o mesário que me olha esquisito como se me conhecesse, mas não me conhece porque ele é um ator que nasceu em 1992 e dirige Uber nas horas vagas. Minha família já foi embora do bairro, mesmo os amigos não estão ...

A palavra do ano

Fiquei pensando na palavra do ano de 2020, naquela que representa melhor que qualquer outra esta temporada que vai se encaminhando para o fim. Um ato de fé supor que as palavras governem o mundo, mas o contrário disso é imaginar que toda matéria de linguagem, inclusive sonhos e corpo, estão esvaziados de sentido.  Primeiro, as mais óbvias: confinamento, distanciamento, Zoom, “live”, Covid e por aí vai, todas mais ou menos situadas dentro de um modo de vida que foi se impondo ao longo dos últimos meses e em torno do qual realinhamos noções de saúde e de convívio com esse outro de quem tivemos de nos afastar por obrigação. Cada uma carrega sentidos diversos, fixam tempos e remetem a um estágio diferente deste ano: janeiro, quando nada fazia crer que viveríamos tudo isso; fevereiro e março, o início da grande onda de recolhimento. De abril a julho, uma agonia a cada contabilidade de morte. E assim por diante, até chegarmos aqui, ao momento no qual tudo é passado sem ter sido de fato. ...

Família

Fui encarregado de contar a história da família, reatar um fio que se perdeu muito tempo atrás com a morte dos meus tios e o desaparecimento de uma tia, a morte da avó, a quem perguntava de onde tínhamos saído, de quem descendíamos, se tínhamos uma raiz, uma ramificação que fosse, um pedaço de chão onde se pôs a matéria viva a que se pode chamar de origem. Porque era importante para mim entender que havia começo, deslocamento, uma geografia natal e um tempo antigo do qual se projetava o futuro, o tempo estirado de agora, o meu tempo. Mas é difícil recuperar esses vestígios, retraçar uma errância, narrar a deriva, contar a ruína. É como remontar o desenho sem todas as peças, equipado com nada mais que as mãos que se esfolam ao cavar. A família é esquiva também. Dela sei muito pouco, apenas o que fui acumulando no próprio corpo e na memória, nos guardados que arrebatei escondido como criminoso ao entrar num quarto ou abrir uma gaveta sem que dessem por mim naquela hora morna da tarde ou ...