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Do Leblon a Jeri: o Brasil barraqueiro

O que é o barraco senão a política por outros meios? Sua natureza, uma altercação física e/ou verbal, é a da relação conflituosa cujo desfecho é não raro as vias de fato, que, por sua vez, são por si mesmas um mistério. Afinal, por que se diz “de fato” de algo como as vias, que não admitem uma acepção assim tão preto no branco? Sabe-se lá. Como solução política, portanto, o barraco tem se mostrado cada vez mais frequentemente uma chave resolutiva para o Brasil de hoje, barraqueiro por excelência. É como uma resposta catártica, uma teatralização violenta do cotidiano em que os impasses do país se encenam à luz do dia ou da noite, mobilizando as paixões e os atavismos nacionais mantidos na camada mais superficial da pele tupiniquim. Seja nas áreas comuns dos condomínios, nas pousadas litorâneas ou na rua, o brasileiro recorre ao expediente mesmo se não esgotadas todas as alternativas à mão civilizada: a conversa, o silêncio, a intermediação cautelosa e bem-vinda de outrem, o simples dar ...

Adivinhações

Ultimamente penso por palavras, vocábulos soltos em torno dos quais elaboro um universo que não chego a descrever com precisão, a lhe dar existência efetiva. Vivem apenas como suposição, nomes à deriva por aí, como adivinhações.  Anoto, registro, procuro o caderno e escrevo rápido para não esquecer, a memória um tanto falha para tudo que a exige nestes dias. Mas daí não avanço, a palavra se esgota nessa possibilidade, termina ali, não sigo em frente e não a procuro porque o fato de que exista talvez me baste, eu me contento em tê-la acima e logo abaixo o vazio onde a qualquer momento eu poderei dizer o que quer que seja, mas não digo. Quem sabe seja a atenção flutuante, como o mundo flutuante, uma oscilação de energias como essa da rede que faz as luzes piscarem devagar.    

De volta à praia

Voltei à praia e não vi a praia, apenas areia e destroço, cascalho rangendo a cada passo que dava enquanto tentava me aproximar do mar. Era escuro, ia a trabalho, as luzes dos postes mal iluminando quem passava ao lado, a ausência da água mesmo perto da água. Aspirei mais fundo, nada. A paisagem subvertida, o calçadão alargado à força como se aberto ao pouso de um módulo lunar. Estávamos fora, a gravidade mais baixa deixava os movimentos mais lentos. Custávamos a chegar aonde quer que fosse. Um pouco de sonho, mas era real, eu sei. Tinha comigo essa sensação de que acordava e dormia a cada dois segundos, num intercâmbio de mundos, de significações migrantes. Coisas que extrapolavam, excediam, exorbitavam. Dizem que do mar agora se corre porque muito perto já se afunda. É preciso então medir o passo quando se avança porque o risco do afogamento é maior. Não sei se falam a verdade, se exageram, se mentem, eu mesmo não mergulhei ali para saber se cavaram mais do que deviam, é possível que...

A política do barraco

 O que é o barraco senão a política por outros meios? Sua natureza: altercação física e/ou verbal, relação conflituosa cujo desfecho é não raro as vias de fato que, por sua vez, são por si mesmas um mistério.  Afinal, por que se diz “de fato” de algo como as vias, que não admitem uma acepção assim tão preto no branco? Sabe-se lá. Como solução política, portanto, o barraco tem se mostrado cada vez mais frequentemente uma chave resolutiva e, mais importante, catártica, numa teatralização violenta do cotidiano nacional em que os impasses do país se encenam à luz do dia ou da noite, mobilizando as paixões e os atavismos nacionais. Seja nas áreas comuns dos condomínios ou na rua, quando o brasileiro recorre ao expediente mesmo se não esgotadas todas as alternativas à mão: a conversa, o silêncio, a intermediação cautelosa e bem-vinda de outrem, o simples dar de ombros e procurar outro rumo, evitando-se a confrontação odiosa com o semelhante. Não. Saltamos essas etapas e passamos ao ...

Pelejar com dunas

Imagine a cena: a equipe do governo encarregada de tanger a duna de volta pro morro. Cedo, os homens chegam ao local, a areia espalhada na pista. Observam, medem com a vista o tamanho do estrago. Carros derrapando ao passar, mulheres se desequilibrando, meninos respirando areia. Fingem desconcerto. E então se põem a mourejar ao sol, devolvendo ao morro o que sabem que, logo, logo, tornará ao canto de sempre, quando terão de voltar e mais uma vez refazer o desfeito. Para isso são pagos. Mas, ao final, sabem que é como deter a água do mar com um rodo ou impedir a passagem do vento com uma sacola. Um empreendimento de Sísifo. Quis ver poesia no fato de que a duna reocupasse o lugar que é seu, a natureza sempre retomando o controle, impondo-se ao construto e toda essa besteirada que escrevemos para compensar a impotência e disfarçar o fato de que, no frigir dos ovos, perdemos muito e sempre. Porque as dunas pelejam, mas estão derrotadas de antemão, não há dúvida de que, cedo ou tarde, o...

Dunas móveis

Ri ao imaginar a equipe encarregada de tanger a duna de volta pro morro, algo como afastar a água do mar com um rodo ou impedir a passagem do vento com uma sacola. Um empreendimento de Sísifo, e, no entanto, é o que temos visto. Imagine-se o superior ordenando ao auxiliar: encaminhe-se agora mesmo à rodovia tal e varra de lá a areia da praia, de modo a liberar novamente a via construída à margem de uma duna, atravessando um parque, ocupando lugar que não devia, portanto totalmente inadequada. Quis ver poesia no fato de que a duna reocupasse o lugar que é seu, a natureza sempre retomando o controle, impondo-se ao construto e toda essa besteirada que escrevemos para compensar a impotência e disfarçar o fato de que, no frigir dos ovos, perdemos muito e sempre. Há, evidentemente, o ridículo da situação: interpelar a justiça e dela esperar autorização para, daí sim, passar o pano na rua recoberta de areia porque, afinal, é o que faz a areia: espalha-se. É como opera também uma duna móvel: m...

Meu nome é Antonia

Lembro de Antonia em casa indo de um cômodo a outro, inspecionando gavetas e armários, deslizando a ponta dos dedos pela superfície da mesa, uma litania de gestos que se destinavam a um trabalho minucioso de checagem ao fim do qual ela se virava sem avisar e perguntava a quem estivesse por perto: você tem uma identidade? E então dava as costas e retomava essa coreografia doméstica. Levava tardes inteiras assim, simulando acúmulo de tarefas mesmo quando não havia nada para fazer. Apenas quando começava a suar é que ia para o quintal e lá cortava com uma faca os ralos da pia e do chão, liberando o fluxo da água e depois vedando tudo com tufos de sabonete, que ela pressionava com as mãos como massa de modelar. Em seguida, repetia a pergunta: vocês têm uma identidade?, agora dirigida a um coletivo que representava não mais o interlocutor, imaginário ou real, mas a casa, a família, o pai, a mãe, meus irmãos, minha avó e eu, todo o espaço para o qual ela havia se mudado semanas atrás trazida...