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Cancelar ou chancelar?

Na dúvida entre chancelar ou cancelar tal pessoa que eu considerava bacana, caí na bobagem de esperar, ponderando prós e contras e tentando encontrar um meio-termo entre qualidades e defeitos. Mas esse exercício só me fez perder tempo, e a crista da onda passou levando consigo potenciais seguidores. Esse foi o meu pecado. Apenas muito tardiamente resolvi cancelar o cara, e então me pus a xingar a figura nas redes, me empenhando em críticas cada vez mais virulentas que eu fazia chegar a todos por meio do meu perfil no Twitter, a rede social perfeita para a propagação febril desse tipo de ação raivosa. As notificações pipocaram em instantes, não aplaudindo minha ojeriza e retórica inflamada, mas pedindo que eu revisse minha postura radical, já que o fulano havia se retratado minutos antes e explicado tudo numa postagem muito longa noutra rede que não costumo frequentar. Rapidamente passei a redigir eu mesmo o meu próprio mea culpa, admitindo que havia cancelado o dito-cujo sem ...

Mudar de óculos

Trocar de óculos é uma experiência. Altera o rosto. De repente, você é outra pessoa, os olhos se amiudando atrás de uma armação diferente da que costumava usar, o incômodo de parecer um alheio, um duplo de si – mas quem? A pessoa do óculos é e não é você, como o gêmeo siamês naquele retrato da festa de 15 anos. Eu a conheço? Talvez não, talvez sim. Vejo-a na imagem e lembro de dez anos atrás, quando passou no oculista logo depois de dilatar a pupila e sair trôpego pela avenida enxergando apenas borrão. O segundo par: desenho fino, uma bossa nos sobrolhos e as hastes num marrom esmaltado cafona. Tinha 30 anos então, mas parecia ter 40. Sempre foi velho. Bola pra diante. Naquele momento, a moda era aparentar mais idade, mas agora que tem mais idade, escolheu um modelo mais jovial. Nada colorido ou de aro muito adelgaçado, porque pode torcer e se partir com facilidade, basta esquecê-lo no sofá.  Queria um mais barato, então indicaram a loja dos evangélicos, ali no Centro. Foi até ...

Bolsonaro e o casamento

A metáfora do casamento é recorrente na fala de Jair Bolsonaro assim como a do futebol era na de Lula. Ambos buscam a mesma aplicação da palavra, ou seja, simplificar a comunicação, aproximando-se do eleitorado e rebaixando a mensagem a categorias de fácil assimilação, ainda que sob o risco de falsear a realidade. Bolsonaro “matrimonializou” a política, agora convertida em espaço das mesmas vicissitudes a que estão sujeitas as relações amorosas: altos e baixos, DRs, traições, ímpetos e rompimentos – sua gramática é afetiva, restrita ao enlace entre duas pessoas, e seu universo é o do privado e da alcova. Assim, o presidente anuncia noivado com uma candidata a secretária, que estuda se quer ou não o engate oficial. Por enquanto, divertem-se os dois, estão apenas namorando. A cafonice não para por aí. Há também os estremecimentos e solavancos típicos de qualquer casamento, garante o presidente, que transformou esse léxico em principal marca do governo, a ponto de a comunicação o...

On/off

Num intervalo de poucos dias, li dois textos que fazem alusão a supostos benefícios da desconexão digital, um detox de redes e aplicativos que tem por finalidade purificar a mente e alinhar os chacras, purgando as toxinas da alma e supostamente restabelecendo um equilíbrio próprio de que o corpo necessita.  Conto minha própria experiência. Por seis dias, estive longe do celular e da internet. No máximo, TV, e para ver algum filme. Nada de Whatsapp, Twitter ou Facebook, que já aposentei quase que totalmente. No computador, apenas processador de texto. Como quase tudo, no começo foi difícil. Sentia a todo instante a comissão de checar emails ou mensagens. De tempos em tempos, queria atualizar a página do jornal para saber se alguma tragédia se abatera sobre o país. Apesar da pressão, consegui me segurar. Usuário inveterado de Twitter, tive dificuldades para me afastar. A todo momento, tinha a impressão de que uma festa, para a qual eu não fora convidado, se desenrolava muit...

Desventuras de um pintor de paredes

Num dia qualquer no meio das férias, decidi pintar uma parede. Parecia uma boa ideia. Sim, de fato, eu dispunha de tudo de que um pintor de paredes precisa: tempo, material e uma superfície que carecia de uma boa mão de tinta, já que fora diligentemente riscada por minha filha nos últimos três anos, de modo que quem entrava em nossa casa deparava sempre com um mural de garatujas rupestres em marrom, laranja e verde que incomodavam a vista, ainda que fossem bonitinhas. Tudo bem, eu disse a mim mesmo, convencido de que a mera proatividade era suficiente para o sucesso da minha empreitada. Afinal, eu já havia dedicado uma semana inteira a jogar videogame e mais três ou quatro dias a escrever um projeto que talvez não dê em nada. Também tinha me recusado a levar o gato para o banho. Estava em dívida, portanto. Não custava, agora, empregar uma fração dessas horas livres numa atividade doméstica cujos resultados trariam benefícios incalculáveis para toda a família, certo? Qual o quê. ...

Crítica de "Democracia em vertigem"

Entre as qualidades e defeitos de Democracia em vertigem , novo documentário de Petra Costa que estreou na Netflix no mesmo dia em que Sergio Moro depunha no Senado, cito os dois principais: é um alentado resumo dos fatos políticos mais relevantes dos últimos 15 anos no País. Mas é também uma narrativa que adere facilmente a um ponto de vista , o que talvez acabe comprometendo seu alcance e propósito, qual seja: o de falar a um número amplo de pessoas além dos círculos de convertidos. A obra parece se satisfazer em comunicar-se com a sua bolha. É, de longe, o seu elemento mais frágil. Às qualidades, que não são poucas: Costa é eficaz ao repassar o processo de formação da política nacional, ancorando-o em fatos históricos e avançando década a década até chegarmos ao período pós-redemocratização e aos eventos que se seguiram às eleições de Lula em 2002 e 2006 e de Dilma Roussseff em 2010 e 2014. Outro acerto do filme: sob perspectiva inédita, apresenta a antessala de nossa crise ma...

Rito

Era 29 de dezembro de 2018 quando escrevi: “No mar há um instante em que nenhum vento sopra, nenhuma onda quebra, nenhum mergulho se ouve. É essa a paisagem que vejo daqui”. Daqui era o lugar de então, um espaço movediço do qual falava naquele finalzinho de ano em que me recusei a fazer essa operação de olhar em torno e tentar apreender num só movimento o todo que me abarcava. Foi quando essa imagem se impôs, a do corpo flutuante, suspenso como se sem peso, parado em meio ao cenário de esgotamento numa travessia temporal, a passagem ritualística do calendário.  Atravessei o ano, cruzei-o inteiro e cheguei à outra margem. O mar agora é outro, as toneladas de areia e sedimentos jogadas mecanicamente por braços de tratores às vésperas da festa alteraram o caminho das correntes. As ondas não são as mesmas, tampouco a profundidade. Nele afunda-se tão logo metem-se os pés na água. As pás cavaram sem descanso nos meses que antecederam ao fim, deitando fora uma terra e depo...